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Cidade se Mantém um Mês em Silêncio para Salvar Instrumentos dos Séculos XVII e XVIII

Parte de Cremona foi fechada para projeto de digitalização dos sons caraterísticos de instrumentos dos séculos XVII e XVIII

CREMONA, Itália – Florencia Rastelli ficou mortificada. Como uma barista experiente, ela nunca havia derramado uma única xícara de café, garante. Mas recentemente, quando limpava o balcão do Chiave di Bacco, o café onde trabalha, ela derrubou um copo e ele quebrou ruidosamente no chão.

Todos os clientes ficaram parados, petrificados, recorda.

— Na hora pensei: de todos os dias, tinha que ser hoje — diz. — Até um policial apareceu me pedindo para manter o silêncio. Fiquei muito envergonhada.

As pessoas de Cremona estão sensíveis ao barulho esses dias. A polícia isolou as ruas do movimentado centro da cidade e o tráfego foi desviado. Durante uma coletiva de imprensa recente, o prefeito da cidade, Gianluca Galimberti, implorou aos cidadãos de Cremona que evitassem quaisquer sons súbitos e desnecessários.

Isso porque ficam em Cremona as oficinas de alguns dos melhores fabricantes de instrumentos do mundo, incluindo Antonio Stradivari, que nos séculos XVII e XVIII produziu alguns dos melhores violinos e violoncelos de todos os tempos. A cidade está apoiando um ambicioso projeto de registrar digitalmente os sons dos instrumentos Stradivarius para a posteridade, além de outros de Amati e Guarneri del Gesù, outros dois famosos artesãos locais. E isso significa ficar quieto.

Um Stradivarius representa o auge da engenharia de som, e ninguém foi capaz de reproduzir seus tons únicos. Fausto Cacciatori, curador do Museo del Violino de Cremona, está ajudando com o projeto. Segundo ele, cada Stradivarius tem “sua própria personalidade”. No entanto, acrescenta ele, seus sons característicos “inevitavelmente mudarão” e poderiam até ser perdidos em algumas décadas.

 Faz parte do ciclo de vida deles — explica. — Nós os preservamos e restauramos, mas depois que atingem uma certa idade, eles se tornam frágeis demais para serem tocados e “dormem “, por assim dizer.

‘Imortalizando o melhor instrumento já criado’

Gabriele Schiavi, 31, toca um violino criado por Giuseppe Guarneri numa sessão no Museo del Violino, em Cremona, Itália Foto: ISABELLA DE MADDALENA / NYT

Para que as futuras gerações não deixem de ouvir os instrumentos, três engenheiros de som estão produzindo o “Stradivarius Sound Bank” — um banco de dados que armazena todos os sons possíveis que quatro instrumentos selecionados da coleção do Museo del Violino podem produzir.

Um dos engenheiros, Mattia Bersani, disse que os sons no banco de dados poderiam ser manipulados com software para produzir novas gravações quando o tom dos instrumentos originais se degradasse. Os músicos do futuro seriam capazes de “gravar uma sonata com um instrumento que não funciona mais”, diz ele.

— Isso permitirá que meus netos ouçam como um Strad soava —  afirma Leonardo Tedeschi, um ex-DJ que surgiu com a ideia do projeto. — Estamos imortalizando o melhor instrumento já criado.

Ao longo de janeiro, quatro músicos vão trabalhar tocando em dois violinos, uma viola e um violoncelo centenas de escalas e arpejos, usando diferentes técnicas com seus arcos. Trinta e dois microfones ultrasensíveis instalados no auditório do museu capturam os sons.

Será fisicamente e mentalmente desafiador para eles — diz Thomas Koritke, engenheiro de som de Hamburgo, Alemanha, que lidera o projeto. — Eles terão que tocar centenas de milhares de notas e transições individuais por oito horas por dia, seis dias por semana, por mais de um mês. Organizar o projeto também levou muito tempo, acrescenta Koritke. — Levamos alguns anos para convencer o museu a nos deixar usar instrumentos de corda de 500 anos.

Ajuda do prefeito

A partir daí, foi preciso encontrar músicos que conhecessem esses instrumentos de maneira profunda. Em seguida, foi preciso estudar a acústica do auditório, projetada em torno do som dos instrumentos.

Em 2017, os engenheiros acharam que o projeto estava finalmente pronto, Mas uma passagem de som revelou uma grande falha.

— As ruas ao redor do auditório são feitas de paralelepípedos, um pesadelo auditivo — lembra Tedeschi. O som do motor de um carro, ou de uma mulher andando de salto alto, produz vibrações que correm debaixo da terra e reverberam nos microfones, tornando a gravação sem valor, explica. — Ou fechávamos toda a área ou o projeto não aconteceria.

O violino “Vesuvius”, feito por Antonio Stradivari em 1727 Foto: ISABELLA DE MADDALENA / NYT

Para a sorte dos engenheiros, o prefeito de Cremona também é o presidente da Fundação Stradivarius, o órgão municipal que administra o Museo del Violino. Ele permitiu que as ruas ao redor  fossem fechadas por cinco semanas, e apelou para as pessoas na cidade manterem o silêncio.

Somos a única cidade do mundo que preserva os instrumentos e suas vozes — diz Galimberti. — Este é um projeto extraordinário que olha para o futuro, e tenho certeza que as pessoas de Cremona vão entender que o fechamento da área era inevitável.

Em 7 de janeiro, a polícia isolou as ruas. A ventilação do auditório e os elevadores foram desligados. Todas as lâmpadas da sala de concertos foram desenroscadas para eliminar qualquer zumbido.

No andar superior do museu, Cacciatori vestiu um par de luvas de veludo e tirou uma viola Stradivarius 1615 de sua vitrine de vidro. Ele a inspecionou completamente, e então um guarda de segurança o acompanhou com o instrumento e desceu dois lances de escada até o auditório.

O curador entregou o Stradivarius ao músico holandês Wim Janssen, que caminhou até o centro do palco. Ele sentou-se em uma cadeira na semi-escuridão, envolto por microfones. Os três engenheiros saíram do salão e sentaram-se em uma sala à prova de som. Janssen usava um fone de ouvido, através do qual Koritke transmitia instruções.

“Toque”, Koritke sussurrou. O violista tocou uma escala de C maior, enquanto a equipe de gravação observava gráficos em suas telas respondendo ao som nítido do instrumento. Tedeschi sorriu de satisfação.

Então algo aconteceu, e eles congelaram.

Pare por um momento, por favor — disse Koritke, e o violista manteve sua posição. Os engenheiros rebobinaram a gravação e a tocaram novamente. Koritke ouviu o problema, alto e claro: — Quem derrubou um copo no chão?

Fonte: O Globo

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