Sabemos que um dos pilares da Soft Economy é a economia do cuidado. Sendo assim, o artigo de hoje traz um grande exemplo do que tanto falamos aqui no Voicers. A história de hoje é sobre o Henrique Rego, médico geriatra que se voluntariou nessa Pandemia, e foi até Manaus, epicentro da doença durante muito tempo, e fez o que sabia de melhor para ajudar.
Com a clínica fechada devido à pandemia de coronavírus, o geriatra Henrique Rego, 38, deixou a cidade de São Paulo no mês passado e se voluntariou para atender pacientes em um hospital público em Manaus (AM), o Delphina Aziz, referência no atendimento de Covid-19.
Na bagagem, além do estetoscópio, o médico potiguar colocou também um violão e um ukulele caso houvesse a chance de levar um pouco de música para um ambiente de tanta dor e sofrimento. No hospital, ele passou a trabalhar no pronto-socorro e na enfermaria.
“Eu me considero um cuidador de pessoas. Não importa a ferramenta que eu estou usando. Pode ser um estetoscópico, um ukulele ou um violão”, diz o médico músico.
Na segunda semana de trabalho, já ambientado ao lugar, ele começou a tocar para os colegas na hora do almoço. Logo a cantoria se estendeu para os corredores e a ala da pediatria.
O impacto foi tão positivo que ele foi convidado a tocar e cantar nas celebrações das altas, em que o paciente, com a plaquinha “Venci a Covid”, passa pelo “corredor da vitória” sob aplausos dos funcionários.
“Soube que tinha um paciente fã do Roberto Carlos e eu toquei e cantei ‘O Portão’: ‘Eu voltei, agora para ficar porque aqui, aqui é meu lugar...’ Ele ali, se reencontrando com a esposa, ela beijando a testa dele, foi muito emocionante.”
Rego conta que, como os pacientes de Covid não podem receber visitas ou ter acompanhantes, sentem-se muito sozinhos e com medo de morrer.
“Chegar com a música era um alento muito grande. Eu via o sorriso deles através do olhar, a emoção pelo brilho nos olhos. Aprendi a me comunicar com o olhar”, diz ele.
Para os colegas de trabalho, a música passou a ser uma aliada na descompressão de jornadas extenuantes. “O profissional de saúde nunca se sentiu tão tenso. Era bonito ver meus colegas vibrando quando eu pegava o ukulele e começava a cantar.”
A intenção dele é sempre a de tocar e cantar músicas que as pessoas conhecem. O repertório inclui Raul Seixas, Almir Sater, Titãs, Roberto Carlos, canções sertanejas e religiosas.
“O importante é me conectar com as pessoas, que a gente se sinta realmente juntos. Aquela sensação de solidão, de peso, vai embora. A música leva leveza para o ambiente pesado. Sorrir também é uma forma de cura.”
Não que alivie tudo. O médico conta que passou por momentos de muita tristeza, como quando teve que dar a notícia da morte de um idoso de 92 anos para o filho de 59 anos, que tinha sido impedido de fazer companhia ao pai pelo risco de contágio. “Ele chorava muito. Não se conformava de não ter ficado ao lado do pai.”
Todos os dias, além de passar o boletim médico para os familiares dos doentes internados, Rego fazia videochamadas ou vídeos dos pacientes mandando mensagens para a família. “Para que os familiares vissem que ele estava falando, comendo, sorrindo.”
O hospital tem também uma janela externa em que possível observar o interior. “Muitos parentes passavam às vezes dia e noite só para ver se o paciente aparecia para dar um tchau.”
Uma história que o marcou foi de uma adolescente de 17 anos que ficou internada e nunca tinha dormido fora de casa. “Os pais ficavam todas as noites na janela para ela não se sentir sozinha.”
O projeto da música no Delphina Aziz seguirá com outros médicos do hospital. Há 15 dias de volta a São Paulo, Rego planeja iniciativa semelhante na capital paulista.
O geriatra diz que desde os primeiros anos de faculdade percebeu que a medicina exclusivamente farmacológica o incomodava e passou a usar a arte como forma de cuidado.
Além da música, fez um curso com norte-americano Hunter Doherty, o Patch Adams, o médico-palhaço que virou tema de filme protagonizado por Robin Williams (1951-2014).
Seu primeiro trabalho voluntário após ter formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte foi numa tribo de ianomâmis, na fronteira do Brasil com a Venezuela, no Amazonas, em 2007.
“Estava todos os dias na aldeia com os índios. Atendia ataques de tamanduá, picadas de arraia, coisas que eu nunca imaginei. Atendi mais malária do que gripe. Às vezes, fazia ausculta com o ouvido nas costas da pessoa porque não tinha estetoscópio. Estava atendendo, aparecia um macaco, um tucano.”
O pai, o cardiologista Cleanto Rego, de Natal (RN), ficou apreensivo com a aventura do filho recém-formado. “Mas ele viu que eu estava tão feliz por lá que foi me visitar e passou 15 dias atendendo na aldeia.”
O geriatra relata que sempre sonhou em fazer medicina para quem precisa. “Estudei numa escola pública e queria retribuir.”
Quando se mudou para São Paulo, há 11 anos, ele diz que teve dificuldade em assumir esse seu lado mais integrativo.
“Tinha uma questão cultural, algum lugar dentro de mim achava que eu poderia ser visto como menos médico se eu falasse que era palhaço, que canto, toco e falo de amor.”
Depois de fazer seis anos de residências médicas nas especialidades de clínica geral, medicina de família e geriatria, decidiu cursar uma pós-graduação em medicina integrativa no Hospital Albert Einstein (SP).
“Ali conheci várias oportunidades de cuidado e pesquisei sobre o uso da música para o controle de agitação de idosos com Alzheimer”, relata. Quando terminou, passou a dar aula sobre o tema na instituição.
A música passou a fazer parte dos seus atendimentos no consultório e no hospital, onde conta com a parceria de outros colegas. “Se existe clima, eu levo o ukulele e toco com a família, o paciente, o pessoal da enfermagem e os médicos.”
Rego também é professor de geriatra no programa de residência médica do Hospital Santa Marcelina (SP). Lá, convoca os seus alunos para cantar para os pacientes. “Eles brincam: ‘o chefe tá chamando, tem que ir'. Mas no fundo todo mundo gosta.”
Fonte: Folha