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Pais e mães de escolas de elite de SP se engajam em grupos por educação antirracista: ‘A gente quer sair dessa bolha’

Por Vivian Reis, G1 SP

Famílias pedem também maior representatividade negra nos corpos docente, discente e diretivo. Pedagogas alertam para necessidade de transformação do currículo e formação de educadores, além das ações afirmativas por meio de bolsas

Em maio deste ano, o adolescente negro João Pedro morreu dentro da casa em que vivia, que ficou com mais de 70 marcas de tiros no Morro do Salgueiro, no Rio. Dias depois, o homem negro George Floyd foi morto por um policial, que ajoelhou no pescoço dele nos Estados Unidos, gerando uma comoção histórica em todo o mundo.

A diferença de repercussão nos dois episódios catalisou a iniciativa de pais e mães da elite paulistana a se engajar e a se articular em grupos para cobrar uma educação antirracista das escolas particulares da cidade de São Paulo.

“Me perguntei sobre a falta de mobilização por aqui, e o próximo passo dessa reflexão foi: ‘por que eu não faço nada?’, disse Caio Maia, pai de três alunas da Escola Vera Cruz e um dos fundadores do Movimento por Escolas Antirracistas, que reúne 250 pessoas, o limite de um grupo de Whatsapp, com pais e mães de diferentes escolas particulares da capital.

Além deste coletivo, ao menos um outro, a Liga por Escolas Antirracistas, foi formado na mesma época, em meados de 2020, com a mesma reivindicação, e igualmente composto por famílias em que os filhos estudam em instituições de ensino que tem em comum mensalidades que superam os R$ 4.000 por mês.

As maiores conquistas de ambos os grupos até a data foram os debates sobre racismo estrutural por integrantes majoritariamente brancos e de classe média alta, o início de um diálogo com as escolas e a proliferação de novos coletivos de pais, agora, um de cada instituição.

“Eu já havia conversado com outras mães e havia um consenso de que a falta de diversidade racial era um calcanhar de aquiles nas escolas privadas como um todo. Estudei nos Estados Unidos e encontrei na minha pós um ambiente bem mais diverso”, disse Maria Anita Martínez Ferreira, mãe de três alunos da Escola Móbile.

“Apesar disso, eu só estava nas minhas leituras, até que uma mãe me colocou no Escolas Antirracistas, onde encontrei uma fonte de debate. Não tem consenso por lá, e isso é importante. Falamos sobre ‘branquitude’, sobre a nossa responsabilidade na construção dessa bolha, mas evitando sentimentos de culpa, que paralisam. É um passo e um compromisso que assumimos”, continuou ela, que posteriormente formou um grupo com cerca de 100 pais e mães da Móbile.

Pais e mães na primeira reunião do coletivo do Colégio Oswald de Andrade com o conselho pedagógico da escola — Foto: Arquivo Pessoal
Pais e mães na primeira reunião do coletivo do Colégio Oswald de Andrade com o conselho pedagógico da escola — Foto: Arquivo Pessoal

‘Sair da bolha’

A advogada Evie Barreto Santiago é uma das mães que coordenou a formação de um grupo antirracista para famílias do Colégio Equipe.

“O que a gente busca é equidade racial nos corpos docente, discente e diretivo, a revisão integral do currículo para acabar com o eurocentrismo e para trazer outras visões de mundo, e um ambiente de discussão perene sobre o racismo estrutural. A gente não quer mais ficar preso nessa bolha”, disse à reportagem.

“Como diz Silvio de Almeida, o racismo mata. E o racismo nas escolas particulares reverbera na rua, na forma como a polícia trata o negro, no desemprego, na atenção à saúde pública. Tudo isso é fruto de uma sociedade insensível”, continuou Evie Barreto Santiago.

O cientista político Cássio França, pai de dois alunos do Colégio Oswald de Andrade, e um dos articuladores do grupo de famílias da escola, reforça a responsabilidade das instituições privadas em se engajar por ações antirracistas, inclusive porque não faltam a elas recursos para investir em materiais e formação de educadores.

“As escolas de certa maneira se tornaram celeiros do racismo no país, uma vez que não colocam isso na agenda das crianças. A desnaturalização do racismo deve ser uma tarefa de todo projeto político-pedagógico, assim como das famílias. Não é uma questão de salvar a vida dos meus filhos – é o país, é civilizatório. O país se sentou em um lugar de aconchego que é inadmissível”, disse Cássio França.

Jornalista e empreendedor Rosenildo Ferreira é pai de uma aluna do Oswald. Ele compõe o grupo de famílias do colégio — Foto: Arquivo Pessoal
Jornalista e empreendedor Rosenildo Ferreira é pai de uma aluna do Oswald. Ele compõe o grupo de famílias do colégio — Foto: Arquivo Pessoal

O jornalista e empreendedor Rosenildo Ferreira é pai de uma aluna do Oswald. Para ele, o episódio George Floyd tornou a demanda por uma escola antirracista maior e mais urgente do que nunca.

“Talvez antes desse caso a gente se contentasse com diversidade. Hoje, a gente quer antirracismo na veia. O racismo não é adquirido, ninguém acorda um dia racista. Ele é ensinado e com método. Tem que haver, então, uma mudança sistêmica. Nada me incomodou mais a vida inteira do que entrar nos lugares e ser o único negro; imagina como é para uma criança. É o que aquela escritora fala: quando você não pode contar sua própria história, seu referencial vira os outros”, completou.

Como as escolas reagiram

Escola Vera Cruz

A Escola Vera Cruz, onde estudam as filhas de Caio Maia, um dos fundadores do Movimento por Escolas Antirracistas, disse que lançou no mês passado, em outubro, o Projeto Travessias, que já estava em desenvolvimento desde maio de 2019.

De acordo com a instituição, o trabalho contempla um conjunto de ações para combater o racismo no no ambiente escolar, especialmente por meio da valorização da cultura e história afro-brasileira e indígena no currículo, e do aumento da representatividade negra entre alunos, educadores e cargos de gestão.

A escola destacou ainda que nos últimos anos se dedicou a uma reavaliação sobre os conteúdos e práticas relacionadas ao tema, que incluiu a atualização dos acervos das bibliotecas, e que também existe uma atenção à formação continuada dos profissionais por meio do Instituto Vera Cruz.

Colégio Equipe

Evie Barreto Santiago, do grupo de famílias do Colégio Equipe, disse à reportagem que a escola tem sido receptiva com as pautas. “Sugerimos ocupar as redes sociais da instituição por uma semana, pra levantar discussões sobre o racismo estrutural, e toparam. Vimos com bons olhos”, afirmou.

Questionada, a direção do Equipe disse que ficou muito satisfeita com a organização dos pais, que, além da ocupação das redes, agendou uma live para a comunidade escolar com a escritora portuguesa Grada Kilomba, e promoveu aulas especiais com professores e professoras negras sobre representatividade e feminismo negro.

“Temos uma agenda de trabalho conjunta e demos prioridade para essas ações nesse momento. Entendemos que outras serão a médio e longo prazo”, completou a nota a diretora escolar Luciana Fevorini.

Eugênio Lima e Evie Barreto Santiago, pais de alunos do Colégio Equipe. Comissão antirracista do colégio ocupou as redes sociais da escola para discussão sobre racismo estrutural — Foto: Redes Sociais/Reprodução
Eugênio Lima e Evie Barreto Santiago, pais de alunos do Colégio Equipe. Comissão antirracista do colégio ocupou as redes sociais da escola para discussão sobre racismo estrutural — Foto: Redes Sociais/Reprodução

Escola Móbile

Maria Anita, do grupo de famílias da Escola Móbile, disse que a equipe do colégio os atendeu prontamente e que prometeu retorno. “Sei que é um assunto do coração da equipe pedagógica, e eles foram ágeis. Já temos um programa, e eles estão trabalhando nele. O retorno será para a comunidade, o que acho positivo, porque não era mesmo para um nicho de mães preocupadas”, afirmou.

Em nota, a Móbile disse que está ciente da desigualdade de oportunidades, e que está desenvolvendo iniciativas para mudar o panorama, como a oferta de bolsas de estudo em parceria com a Fundação Jatobá e com o Instituto Social para Motivar, Apoiar e Reconhecer Talentos (Ismart). A instituição de ensino disse ainda que mantém projetos de ação social junto a escolas públicas e que o currículo contempla projetos para sensibilizar os alunos para a alteridade e multiplicidade cultural.

Colégio Oswald de Andrade

Rosenildo Ferreira, do grupo de famílias do Colégio Oswald, disse a escola tem se engajado e foi em busca de uma consultoria.

Em nota, o Oswald confirmou a iniciativa, disse que recebeu com bastante entusiasmo e acolheu com cuidado cada uma das propostas, e acrescentou que nos últimos dois meses contratou colaboradores negros, entre estagiários, funcionários administrativos e professores.

Além disso, o colégio informou que para o ano de 2021 há uma determinação para contratar preferencialmente professoras e professores negros.

Mais do que cotas

G1 também conversou com duas pedagogas, especialistas ensino étnico-racial, que consideraram bastante positivas as iniciativas das escolas, mas que reforçaram o cuidado para que as reivindicações não se restrinjam à representatividade e às bolsas, mas que sejam atravessadas por uma mudança do currículo e pela formação dos educadores.

“Acho muito positivo que as famílias tenham se mobilizado e puxado a fila dessa pauta. Agora é preciso atenção para além das ações afirmativas que trazem crianças, jovens e profissionais negros e negras para dentro da escola. A questão da representatividade não é supérflua, mas não pode ser a única e principal ação afirmativa, se não vira só estética”, disse a pedagoga Clélia Rosa, especialista em educação para as relações étnico-raciais pela Unicamp.

“Tudo isso tem que estar amarrado à implementação concreta da Lei 10.639, que trata da transformação curricular: a ampliação e a construção de conhecimentos sobre a história do negro no Brasil e nas Américas, a contribuição do povo negro, uma reconstrução imagética dos países africanos… Esse é o desafio para as escolas de elite, eu acho: adotar o Brasil como matriz curricular”, continuou Clélia Rosa.

A pedagoga Juliana de Paula Costa, pesquisadora de relações étnico-raciais na Educação, realiza atividade com crianças no projeto Pisar Nesse Chão Devagarinho — Foto: Pisar Nesse Chão Devagarinho/Divulgação
A pedagoga Juliana de Paula Costa, pesquisadora de relações étnico-raciais na Educação, realiza atividade com crianças no projeto Pisar Nesse Chão Devagarinho — Foto: Pisar Nesse Chão

A pedagoga Juliana de Paula Costa, pesquisadora de relações raciais na Educação, é uma das fundadoras da Pisar Nesse Chão Devagarinho, que trabalha pela educação antirracista, com vivências para crianças e consultoria para escolas e organizações. Ela reforça a importância das instituições se atentarem para mudanças amplas e estruturais.

“É importante tomar cuidado para que, nesse frenesi, a movimentação não acabe se restringindo a uma mudança de imagem, porque seria como pintar paredes em estrutura infiltrada. As escolas precisam revisar o currículo para repensar o programa de cada área, alterar os livros, e, o principal, a formação continuada dos educadores e dos gestores. Isso se entrelaça”, disse Juliana.

“Nos espaços com maioria de pessoas brancas é preciso a consciência de também se ver marcado pela raça, que é a questão da ‘branquitude’, e que muitas vezes é complexo porque é mesmo sobre perder espaço de poder. Não é apenas diminuir a desigualdade racial e social para o negro. É sobre o tipo de sujeito que estamos construindo na sociedade”, completou a pedagoga Juliana de Paula Costa.

Fonte: G1


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