Eles discutem sobre como suas ações são fruto de uma construção machista e o que podem fazer para mudá-la
“De que forma a masculinidade tóxica afetou a sua semana?” É a partir dessa pergunta que um grupo masculino inicia seus encontros semanais em um bar da capital paulista. O coletivo, que se reúne com o objetivo exclusivo de discutir masculinidades, não é o único que agrupa homens desconhecidos entre si para debater e contribuir na luta feminista.
Lucas*, que participa deste grupo, relata que entre os assuntos estão as relações familiares, sexuais e afetivas e o modo como lidam com as próprias características masculinas – de sua construção durante a infância até seus corpos.
Entre os rapazes do coletivo, há uma gama de diversidade: homens de classes B e C; dos 20 aos 50 anos; alguns no início de suas juventudes; outros, já pais. Lucas relata que chegou ao grupo a partir da percepção que os homens não conversavam entre si sobre o que os incomodava.
Ele conta que, em determinada ocasião, começou a contar intimidades para um amigo que conhecia há anos e se deu conta de que nunca havia se aberto com ele. “Nós não tínhamos nada para falar que pudesse ajudar um ao outro.” Lucas entendeu que precisava de um espaço onde os homens pudessem se sentir à vontade. “Preciso ajudar os que falam menos”, disse ao revelar que também integra um grupo específico para homens negros debaterem a intersecção entre masculinidades e racialidade.
Matheus Moreira, que integra outro grupo, o Ressignificando Masculinidades, relata uma trajetória diferente dos homens com quem se encontra. “Muitos diziam ter uma namorada ou mulher muito próxima que era feminista e que elas trouxeram para eles a perspectiva de que ‘precisavam mudar seus comportamentos’”, conta.
Ele relata que o coletivo teve início a partir de um grupo no Facebook onde diversos rapazes compartilhavam referências de debates sobre masculinidades e pautas feministas. Foi apenas em março que o grupo se reuniu pela primeira vez. Nele, o perfil de rapazes é outro. A maioria está na casa dos 25-35 anos, é de classe média, com ensino superior e de maior diversidade étnica. Matheus admite que a maioria já chegou ao grupo com a mentalidade progressista, mas que adoraria receber rapazes de diferentes pensamentos. “O grupo precisa ser acolhedor para qualquer homem que queira deixar de ser tóxico”, defende.
Moreira opina que o fato de a maioria dos rapazes ter ensino superior pode ter relação com as discussões que a universidade imputa. “Até eu entrar na faculdade, não sabia o que era machismo”, admite. Ele reitera a importância em grupos como o que participa, porque percebeu que “só ouvir [o que as mulheres têm a dizer] não ia ser o suficiente para corrigir o curso natural das coisas”.
No entanto, ele conta que diferentemente dos debates nas universidades, nos grupos as conversas acontecem sem um embasamento teórico, apenas na base de trocas sobre experiências pessoais. Lucas critica a abordagem, acreditando que isso pode tornar as discussões superficiais. “Os caras acreditam que a academia foge da realidade”, explica.
Mudando os agressores
Tales Mistura, psicanalista que é mestre em Saúde Pública, explica que, de fato, existe pouco material no campo teórico exclusivamente sobre masculinidade. No entanto, defende que, desde 2013 cresceu a quantidade de estudos sobre Teoria de Gênero, área de grande embasamento para a discussão.
Mistura defende que vivemos em um momento inicial da discussão, o que explica a razão das discussões ainda se darem no “beabá empírico”. No entanto, ele reitera que o movimento de homens machistas que estão questionando suas referências já é um grande avanço para o combate a desigualdade de gênero.
O psicanalista participa desde 2011 do Coletivo Feminista Saúde e Sexualidade Pública. Além disso, coordena o Núcleo de Masculinidades, um grupo reflexivo para homens que foram autuados pela Lei Maria da Penha. “A única coisa que os difere [os homens que participam do grupo] de qualquer outros homem na sociedade é o BO que carregam. É uma mostra fidedigna do perfil diverso dos brasileiros”, descreve.
A participação no grupo não é obrigatória aos que se enquadram na situação, mas os juízes enxergam a atividade como atenuante à resolução da pena dos acusados. Durante os 16 encontros do núcleo, participam 15 homens e 2 facilitadores que conduzem as discussões. Como a maioria não participa dos encontros por vontade própria, o processo descrito por Tales é bem diferente àqueles descritos por Matheus e Lucas.
Segundo Tales, o primeiro momento é de catarse. “Os caras se sentem angustiados e injustiçados. O coletivo, então, acolhe a raiva que estão sentindo.” Como os encontros são baseados nas trocas, a repetição das histórias faz com que os homens possam assimilar com maior clareza o que estão vivendo e ouvindo. “Aos poucos, eles vão entendendo que talvez seja uma crise de masculinidades que estão vivendo, e vão aprendendo a conversar com mais calma”, explica.
O processo, no entanto, não é infalível. “Tem homem que entra e sai do projeto sentindo que é a vítima”, lamenta Tales. Apesar disso, os números mostram uma realidade mais positiva. A taxa de reincidência da Lei Maria da Penha, ou seja, dos homens que voltam a ser incriminados pela lei, é de 75%. Esse número cai com os rapazes do grupo para 6%.
“O projeto de masculinidade hoje é um projeto falido. O máximo que um homem pode fazer é jogar fora as referências que teve. O que cabe no lugar? Vamos ter que construir”, defende Tales
Para dentro dos espaços
O Brotherhood é outro grupo que nasceu com uma proposta similar, mas que cresceu de forma diferente. Rafael Rios, que integra o grupo há 2 anos, explica que o coletivo, que surgiu como um espaço de autodesenvolvimento para homens, despontou como um grupo que leva as discussões para ambientes de trabalho.
Isso porque o grupo já foi chamado para ministrar debates dentro de empresas dos setores público e privado. Configuram a lista do grupo o Ministério Público Federal, o Senado, o Tribunal Regional Federal, a Companhia Siderúrgica Nacional e a General Motors. Rafael admite que pela obrigatoriedade da atividade, há resistência dos homens que participam dos debates, mas que sempre surgem bons feedbacks ao final.
Ele relata que já viveu experiências heterogêneas: de encontros de público misto, assim como exclusivamente à homens ou mulheres. Entre as dificuldades de causar impacto, ele explica a necessidade de adaptação da linguagem de acordo com cada grupo que conversam. “Há termos que não devem ser utilizados, por exemplo, pelo preconceito que podem ter com eles”, lamenta Rafael, “simultaneamente, são termos importantes [como os do universo feminista, por exemplo] que não podem ser invisibilizados”.
A maior lição que a experiência o ensina é como conversar com quem pensa diferente. “Pregar para convertido não vale”, defende Rafael.
Sobre o que eles precisam falar?
Apesar dos diferentes perfis entre os grupos, os debates são permeados pelos mesmos assuntos.
Matheus conta que um dos encontros do grupo Ressignificando Masculinidades que lhe foi mais importante foi sobre choro. “Estava em um momento da minha vida que mesmo estando frustrado, não conseguia chorar”, desabafa. Ele conta que os colegas o ajudaram a entender o porque ele não conseguia chorar, e passaram a entender o ato como algo que lhes foi negado toda a vida simplesmente por serem homens. “É diferente para as mulheres, que desde sempre foram incentivadas a demonstrar afeto e os seus próprios sentimentos”, opina Lucas.
Tales ressalta que as vulnerabilidades que vêm junto ao choro também estão presentes em seu núcleo. Ele explica que é comum que os homens passem da dicotomia extrema de não quererem se expor de forma alguma a se abrirem de forma muito intensa: “É o único espaço que eles têm para falar sobre o que os incomoda”.
Os rapazes acreditam que este lado mais fechado dos homens também recebe gatilhos em atividades como o futebol, onde o contato físico é muito forte. “Em algum momento do jogo, sempre sai briga. É um momento de pôr pra fora”, analisa Matheus. A Lucas incomoda que o jogo tenha que ser obrigatoriamente uma paixão masculina: “eu me lembro exatamente qual era o momento de parar de brincar com as meninas de casinha e ir jogar futebol com os meninos”, relembra.
Matheus e Lucas concordam que o futebol era um dos momentos em que a competitividade masculina era exaltada. Lucas acredita que os homens ‘explodem’ com facilidade justamente por conta do tanto que têm que segurar para si.
“Os meios de socialização dos homens não os acolhem. Quando se expõe sobre algo, aquilo se torna realidade. Por isso, os homens não falam. É necessário dar nome ao que se está sentindo”, defende Tales.
Rafael relembra da dificuldade de certos homens de seu convívio em entender gostos tipicamente não-masculinos que ele possui. Ele, que é servidor público, também trabalha como florista e ministra oficinas sobre no Brotherhood. “Os caras não me perguntavam nunca a respeito”, revela sobre o preconceito. “No início, por vergonha, falava que era algo que eu fazia junto com a minha companheira, apesar de ser uma atividade sol.”
As inseguranças com a sexualidade também fazem parte das discussões. “Começa como brincadeira, por conta do tabu, e depois o pessoal vai levando mais a sério”, admite Lucas. Sobre os próprios corpos, há a pressão pelo corpo sarado e preocupação com a performance na hora H. Chegam a culpar a indústria pornográfica que mostra desde cedo situações ficcionais de um desempenho sexual de sempre muito sucesso. Para eles, a pressão vem desde cedo. “Com 10 anos, já comecei a ouvir do meu pai que eu precisava ‘começar a ver umas coisas aí’”, evidencia Lucas.
Também está na realidade relatada por eles a pressão para que homens a todo o tempo queiram transar, o preconceito com o ponto G, o uso desnecessário de remédios como Viagra e a falta de debate sobre a importância dos preservativos. Quando o assunto entra em aborto, ainda há o conservadorismo. “Alguns são contra, ainda ficam no discurso que é uma vida, que seria o ‘meu filho’”, relembra Lucas. “Entramos pouco nas questões do corpo feminino”.
Outro ponto de polêmica é o assédio. “Muitos ainda têm a visão de que só é estupro se houver uma maldade”, expõe Lucas. “Os rapazes ainda têm muito medo de serem expostos”, conclui.
Em meio a tantas reflexões que tomam o dia-a-dia desses rapazes, Rafael revela que é importante fazer o exercício diário de lembrar que “o primeiro machista que encontro no dia sou eu mesmo quando me olho no espelho”. Ele se considera um ‘machista em tratamento’, termo inventado por Sérgio Barbosa, coordenador do grupo de discussão Tempo de Despertar.
* Nome fictício para preservação da identidade do entrevistado, que optou pelo anonimato.
Fonte: Carta Capital