Por Camila Berteli
Eu vivi esta semana, com mais de 50 mulheres incríveis uma experiência muito profunda! A Convite do grupo Voicers e da especial Ligia Zotini, compartilhei sobre a jornada da heroína e como essa teoria pode nos ajudar a ampliar a visão sobre a nossa própria história enquanto indivíduo.
Para quem não pode estar no encontro, preparei esse texto com as anotações que fiz que me guiaram na conversa. Em breve teremos mais um encontro e eu prometo que este será gravado!!
Baseado nos conceitos da psicologia analítica do autor Jung e na jornada do Herói de Joseph Campbell, Maureen Murdock descreveu a partir da sua vivência clínica, a jornada do arquétipo feminino.
Jung via a psique em 3 níveis – O consciente, o inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo. Dentro de cada estrutura o indivíduo carrega símbolos e padrões, estabelecidos por ele, ou herdados da cultura da humanidade.
No inconsciente coletivo, nível que nos interessa para a conversa sobre a jornada estão os arquétipos, eles são imagens e símbolos, presentes em nosso imaginário, que ajudam a explicar histórias, culturas, experiência e padrões vividas por nós ou por outras gerações.
A jornada da heroína, como a jornada de qualquer herói arquetípico, é um processo de individuação. Essa experiência envolve descobrir quem você realmente é e transformar a visão que você tem do mundo e de si mesmo. É uma busca por um sentido de vida mais transcendente e um desejo de expressar sua verdadeira natureza.
A experiência do feminino nessa jornada é um caminho difícil e as mulheres têm que lidar com um grau extra de dificuldade. Por quê? Porque estamos fazendo essa jornada em um mundo prioritariamente regido pelo arquétipo masculino.
Todas as histórias, mitos e contos que compõe o nosso imaginário colocaram as mulheres em busca de sua identidade em um ambiente que trata a feminilidade como algo dependente, inferior, fraco e objeto de tentação, associado a sexualidade.
Na jornada do herói, conceito amplamente conhecido e utilizado nas construções de roteiros até hoje, apenas dois dos 17 elementos que Campbell descreve caracterizam as mulheres (Priester): “o encontro com a deusa”, onde o herói encontra a deusa-mãe idealizada, como Atena em A Odisséia (1997) que oferece orientação e inspiração, ou a “mulher como sedutora”, onde o herói enfrenta “a tentação que ameaça desviá-lo do caminho de seu destino”.
Murdock que foi uma das alunas de Campbell e psicoterapeuta, questionou Campbell sobre a jornada da heroína. Ele respondeu: “A heroína é o objeto da Jornada do Herói”, acrescentando: “Ela não vai a lugar nenhum, é para ela que o Herói está viajando” (Murdock, citado em A. K. Anderson). Murdock sentiu que esse modelo não atendia às necessidades psicológicas das jornadas das mulheres contemporâneas e mais tarde escreveu seu próprio livro, The Heroine’s Journey: Woman’s Quest for Wholeness (1990), em uma tentativa de preencher a lacuna na estrutura de Campbell . Murdock propõe uma estrutura mítica para a heroína que é relevante e encontra seus próprios desafios.
Em muitos casos, as heroínas inconscientemente usam a jornada masculina como ponto de referência para enfrentar a sua própria experiência e sim há muitas semelhanças entre as duas. Mas, como mencionado antes, The Heroine’s Journey é centrada em seguir em frente, com a mulher tentando preencher a lacuna entre os papéis masculino e feminino, talvez uma diferença essencial entre os dois conceitos seja que o herói já tem poder como homem.
Aqui algumas similaridades entre as duas jornadas
Um importante lembrete aqui é que para Murdock (e representante da escola junguiana de psicologia), o “masculino” e “feminino” não se referem aos gêneros, ao invés disso, são “forças criativas”, que estão presentes em todos os homens e mulheres. Por esta razão, ela sugeriu que a jornada de uma heroína era em direção a uma unidade dessas forças e a “integração dos aspectos feminino e masculino dela mesma”.
Então vamos entender mais que jornada é essa:
1 – Separação do Feminino
As mulheres deixam para toda sua referência feminina. Alguns partem em busca do sucesso e do senso de identidade. Outras fogem das associações negativas do comportamento feminino, querendo ser levadas a sério e não sexualizadas de forma irreal.
O primeiro estágio da jornada trata da rejeição do feminino. Alguns aspectos como ser inferior, passiva, manipuladora, dependente, sedutora ou não produtiva costumam estar atribuídas à figura feminina.
A visão da sociedade exalta características ditas como inerentes aos homens. Valores, como liderança, autonomia própria e autoconfiança, estão vinculados ao masculino na nossa forma de ver o mundo. Ao entender que não os possui, começam a acreditar realmente que são inferiores e acabam buscando por alguma forma de aprovação masculina. A desvalorização de ser mulher começa ainda na infância. Sendo assim, a heroína começa a jornada se desvinculando de tudo que representa o feminino, sua semelhante e do arquétipo de mãe que geralmente é a figura feminina mais próxima e presente na vida da mulher.
Muitas vezes a mulher vê outras mulheres ou qualquer representação do arquétipo feminino como inferiores, tendo dificuldades de trocas genuínas.
2. Identificação com o masculino
Para se encontrar em um mundo voltado para masculino, as mulheres que buscam ser bem-sucedidas costumam imitar o comportamento masculino, abandonando a esfera doméstica, escondendo as manifestações emocionais e adotando traços masculinos na sala de reuniões ou durante o processo de busca por esse sucesso.
Normalmente é aqui que a mulher se aproxima de um mentor ou a uma figura masculina que representa a sua relação com as figuras da sua própria vida. Logo o sinônimo de admiração ou de sucesso aqui pode ser muito distinto. Incluindo modelos que não são positivos de masculinidade já que as referências são de cada experiência individual.
Ao “copiar” ou absorver esses comportamento, a mulher passa a representá-los como seus, sendo reconhecida diferente em seu ambiente por esse perfil (super mulher, forte, que nem parece mulher, mais forte que muito homem, etc)
Ela se vê pronta para enfrentar os desafios.
3. O Caminho das Provas
A heroína enfrenta desafios e obstáculos para seus objetivos. Ela sobrevive a provações, obtém diplomas ou aprende habilidades difíceis.
Ela deve equilibrar sua vida pessoal e profissional. Aliás de preferência não expor sua vida pessoa que pode representar fraqueza. Ela deve provar seu valor para aqueles que pensam que ela não é digna de ser bem-sucedida pelos padrões masculinos.
Na estrada de provações, ela está em busca de si mesma, indo ao encontro de desafios, enfrentando quaisquer obstáculos que possam surgir. Ela se aventura para encontrar a si mesma, a estrada de provações que a levará a descobrir suas forças e suas fraquezas. Ela sente angústia de um período complicado carregado de medos, traumas e sofrimento.
Novas oportunidades em diversos âmbitos de sua vida podem trazer à tona os aspectos positivos e negativos de quem ela é, portanto, um tempo que ela possui para si, sem interferências externas. Conforme segue sua jornada, sentimentos como dúvidas, indecisão, medo, raiva aparecem e ela começa a travar uma batalha com seus demônios interiores contra a auto sabotagem.
As mulheres contemporâneas precisam enfrentar questões como conciliar carreira e maternidade, ou são confrontadas por ter que escolher entre uma ou outra, o mito da inferioridade feminina.
4. A dádiva ilusória do sucesso
Tendo superado suas provações, a heroína atinge certo grau de sucesso, um título, posição ou riqueza. Ela é uma “supermulher” que tem tudo. A síndrome do impostor ainda se insinua e ela se pergunta quando sentirá que realmente teve sucesso.
A falsa ilusão de sucesso aparece quando ela começa a ir além do que lhe é imposto ou do que é saudável.
Antes acostumada a seguir padrões para atender as expectativas alheias, agora inicia um processo perigoso no qual muitas vezes ultrapassa limites. O sucesso que ela tanto perseguiu desperta e ela pode ter tudo o que sempre quis — ser independente, assertiva e, desfrutar de suas conquistas. A heroína sabe quais são suas capacidades e se sente poderosa consigo mesma. Embora ela tenha conquistado muitas coisas, temendo não ser aquilo que esperam que ela seja, a heroína começa uma obsessão por ser produtiva e fazer muitas coisas ao mesmo tempo, como se estivesse fora de controle.
Obter prestígio traz muitas responsabilidades, não só externas como internas. Os mais diversos questionamentos surgem e a mulher parece estar desconectada de todo o resto. Um sentimento de vazio, uma sensação de traição passa a ser cada vez mais frequente e suas emoções experimentam coisas novas como a desolação.
5. Aridez e Dureza
Apesar de seus sucessos, a heroína se sente vazia. Ela sente que deve haver mais vida. Ela pode se sentir traída pelo sistema ou por seus aliados. Ela ouve sua voz interior depois de anos ignorando-a. Ele questiona seus sentimentos e percebe que escolheu o caminho errado.
Um sinal de que a mulher precisa da reconexão pois começa a experimentar o senso da perda.
Aquilo que antes era prazeroso para ela, não mais faz sentido ou simplesmente deixa de ser algo que ela queira fazer novamente, ela se sente cansada por dentro. Aqui brincamos muito sobre o meme da Barbie cansada! Fato que ele nos representa.
A heroína vive a noite escura de sua psique. Ela às vezes se afasta de amigos e familiares. Ela não vê mais sentido em lutar pelo sucesso por seus mandatos anteriores. A heroína deve enfrentar sua Sombra, um arquétipo que, simplesmente, representa as coisas dentro dela que a impedem de fazer o que ela realmente precisa. Ela aprende a ser, não a fazer.
Isso o que ela começa a sentir como se estivesse secando, é uma desolação interna. Os padrões antigos não mais se encaixam e, em algum ponto de sua vida, ela começa a perceber que uma mudança precisa ser feita. Ela conquistou o sucesso, sua independência, porém, nesse processo ela perdeu um pedaço de sua alma e seu coração. É uma tarefa desconfortável para a heroína recusar o próximo desafio, pois isso significaria a morte simbólica e a sensação de incapacidade devido às cobranças que a sociedade impõe como ideal.
Ela precisa se sacrificar por completo, deixando os velhos hábitos serem substituídos por novos que reflitam quem ela realmente quer ser.
6|7. Encontro com a Deusa e Conexão com o Feminino
Para que a heroína possa ser trazida de volta à vida, ela precisa empreender uma jornada paralela ao submundo, encontrar a Deusa ou simplesmente passar por um período de afastamento. Quando ela começa a entrar na escuridão, suas emoções são preenchidas com confusão, raiva, desespero. Toda vez que tenta enfrentar a verdade sobre si mesma, ela prefere se ausentar ou fingir que não vê. Um período de isolamento voluntário ocorre nesse meio tempo e ela se distancia da sua família. Esse período, porém, é uma forma que encontra para voltar para si mesma, sem seguir os padrões masculinos. A espiritualidade da mulher é uma imersão mais profunda dentro dela. Pela primeira vez o foco é voltado para ela. Seu corpo, sua sexualidade, suas emoções, sua intuição, seus valores e sua mente são encontrados no intimo do seu ser. é sua forma de voltar a enxergar o feminino e assim, entender como voltar para este feminino. O caminho de conexão não é sobre aprovações e méritos e sim, sobre experimentar todo o ciclo da natureza feminina.
Ela aceita a sabedoria das mudanças, aceita a escuridão de bom grado e seu lado instintivo ajuda a encontrar significado no sofrimento e na dor, assim como encontrar na luz trazendo a coragem, a força que ela precisa.
Ela se volta para o trabalho criativo e atividades que permitem conexões mente-corpo.
Através de figuras femininas, a maternidade e até mesmo com sua criança interior ressurge. Ela anseia recuperar as partes perdidas de si mesma. A rejeição do corpo feminino atravessa séculos de história por conta dos tabus culturais e religiosos envolvendo o que representa. A partir do momento em que a mulher se livra dessas convenções e aceita seu corpo, sua natureza, ela recupera o controle de si mesma.
8. Curando a divisão com o feminino
A heroína se reconecta com suas raízes e encontra forças no passado. Ela emerge da escuridão com um senso de identidade mais profundo. Ela é capaz de compartilhar com os outros e ser apoiada por eles. Ela recupera traços femininos que antes considerava fracos.
9. Curando o Masculino Ferido
Tendo reorientado seu conceito de feminilidade, a heroína deve se livrar das percepções tóxicas de masculinidade. Se ela rejeitou suas buscas anteriores no mundo masculino, ela procura o que permanece significativo para ela. Ela põe de lado conceitos irrealistas de homens.
Na jornada há um encontro com características positivas do masculino como coragem, determinação e liderança. Mas sem perder a conexão com o seu feminino, criando então uma conexão poderosa.
10. Integração do Masculino e Feminino
Nossa heroína fechou o círculo. Os aspectos masculino e feminino da personalidade são integrados em uma união. Ela é inteira e capaz de amar genuinamente os outros. Ela se lembra de sua verdadeira natureza. Ela aceita o valor da instrução de sua mãe nas atividades enquanto mantém seu interesse nas outras atividades masculinas, muitas vezes estereotipadas.
Diferente do herói, a heroína vive a dualidade de como a sociedade a vê e de quem ela realmente é dentro de si a partir de outros paradigmas.
É um processo de tomada de consciência, traçando sua própria jornada a fim de entender e melhorar sua visão de mundo, até em contraposição a modelos de estereótipos.
Filmes
Alguns filmes modernos que já retratam os personagens com conexões sobre suas preferências e jornadas, se baseiam no conceito da jornada da heroína. Que demonstram o quanto este conceito é moderno é muito alinhado com visão da figura feminina contemporânea.
Alguns deles são Valente, Moana, Capitã Marvel, Enola Holmes, Ray e Newt Scamander que como adiantamos, a jornada não é sobre gênero e sim sobre formas de olhar o mundo e preferências na forma de se expressar.
Importante ressaltar que é uma jornada que acontecem constantemente, sem começo, meio e fim específico.
A cada novo desafio é possível começar uma nova jornada, que já não será a mesma que a anterior, mas ainda com desafios e oportunidades de desenvolvimento pessoal.
E aí gostou da Jornada da Heroína? Se reconhece neste modelo?
Abraços
Por Camila Berteli via Linkedin