Outro dia um post de uma amiga, fazendo uma pergunta sobre o que seria “apropriação cultural” me chamou atenção pela repercussão que causou. Uma enxurrada de sentenças, provocações, afirmações e poucas intenções em tornar aquela pergunta um debate aberto, que gerasse a todos os repliers uma oportunidade de produzir um conceito próprio para o enunciado.
Fiquei me perguntando, dias, se eu entendia o que era apropriação cultural. Preferi andar um pouco para trás...como será que eu ando me apropriando da minha cultura?
Sou nordestina, nascida na Paraíba – “masculina, mulher macho sim sinhô”, toda vez que falo que sou paraibana esse trecho de música na voz de Luiz Gonzaga cantarola na minha cabeça – passei os 3 primeiros anos da minha vida sendo cuidada pela minha avó e por uma tia, numa pequena cidade do interior de Pernambuco. Minha avó materna foi uma das Cafuzas mais lindas que já vi e meu avô, um branquelo baixinho de olhos claros, contava os contos folclóricos mais assustadores que ouvi na infância. A minha mãe e tias tinham cabelos negros, lisos e escorridos que mais pareciam terem sido embebidos no mais puro óleo de coco de tanto que brilhavam.
Uma mistura de negro, índio com uma pitada de branco foi a que adentrou no caldeirão que produziu o sangue que corre nas minhas veias.
Um salto na linha do tempo e me vejo adolescente. Tudo o que eu consigo me lembrar é uma tentativa de me identificar com a cultura europeia, que com certeza (?!) eu tinha... Ora! Estamos num país colonizado, com certeza alguma especiaria – digo, etnia – extra teria sido adicionada ao meu caldeirão. Não sei se por vergonha, por desejo ou por vontade de aproximação, a partir daí, parece que todas as ações no meu caminho desembocavam na Velha Senhora. Explico! Quando pedi para fazer aula de dança, fui direto para o Ballet. Sempre gostei de música clássica e bandas do lado de lá do oceano, quando fiz faculdade optei por comércio exterior ... tudo que eu queria parecia estar do lado de fora, bem longe do meu alcance.
Outros anos se passaram e o caminho continuava visando “os descobridores”, minha segunda formação, psicanálise também vinha de além-mares. Assim como o meu gosto pela Antroposofia, pela pintura e assim por diante.
Veja, não estou desmerecendo todo meu trajeto até aqui afinal, ele me constituiu, faz parte do meu processo formativo. O que acontece é que a pergunta do post da Natasha provocou uma reflexão sobre a minha origem, entende?
Quando olhei para trás foi uma tremenda exclamação que saiu da minha boca: caramba, quanta apropriação cultural!
Ai não teve jeito, recorri ao ‘pai dos burros’:
Apropriação substantivo feminino 1.ato ou efeito de apropriar(-se), de se tornar próprio, adequado; adequação, pertinência. 2. jurato de tornar própria (coisa) sem dono ou abandonada; ocupação.E, mais uma vez, ele me trouxe alívio. Sim, foi uma tremenda apropriação! Mas, não foi uma apropriação nos termos jurídicos (ufa!) porque, toda cultura, possui sua raiz e, o fato de ter sido utilizada por mim, não significa que não tenha dono e, principalmente, que eu não reconhecesse isso. Cheguei, então, a grande questão que motivou todo esse texto: a gente fala muito de apropriação cultural por que existe pouca motivação (interna e externa) para que percorramos o imprevisível e improvável caminho de nos apropriarmos do que nos é original, da nossa origem. Não sei se foi da notícia que eu deixaria o Brasil ou, talvez, da palestra do Satish Kumar sobre o seu livro Soil, Soul and Society, a responsabilidade por plantar a semente da necessidade de limpar o meu olhar colonizado e colonizador sobre as minhas origens, só sei que passei a ter uma urgência para procurar, entender e olhar atentamente o que existia de mais original na minha linhagem. E te digo, não fui tão profundo assim pois, quando eu chegar lá, chegaremos a conclusão que nós dois somos originários da mesma fôrma. Uma das frases mais impactantes do Satish: “humildade e humanidade derivam da mesma palavra: húmus”*. Terra. Voltei ao passado mais uma vez. Desta terra, onde nasci, de onde descendo? E foi ao submeter à cultura indígena a apreciação do meu olhar, que pude ver tudo o que eu acredito que seja bom, belo e verdadeiro. Tudo sempre esteve ali, dentro desta cultura, esperando que eu a contemplasse. O viver em sociedade, o respeito pela natureza, a responsabilidade individual pelo bem-estar comunitário, a sustentabilidade, a tecnologia potente para viver em condições extremas, a criatividade, o ter apenas o que é necessário, a compaixão, a sabedoria do experimentar o que se tem disponível, o apreço à falha como meio de aprendizagem, o cuidado com o outro, a colaboração, a conexão, o flow, o amor, a contemplação, o silêncio, o ser integrado e integrador, o simples. Uau. Bateu aquele orgulho imenso de ser brasileira e ter nesse povo a minha origem, a minha identidade. Também entendi o “por quê” da minha urgência em me apropriar dessa origem, como poderia apreciar – e não me comparar – ao adentrar numa nova cultura, sem que as minhas origens estivessem consolidadas em mim? Como teria olhos limpos para enxergar e ser grata à enxurrada de percepções novas que me invadem nos pampas porteños se não tivesse feito esse exercício? Como poderia, verdadeiramente, reverenciar as minhas origens se nunca tivesse apreciado as suas qualidades? E sabe como me aproximei mais de uma das prováveis tribos indígenas que descendo? Através da tecnologia! E contando para uma amiga a minha total felicidade pelo feito ela diz: ‘péra, mas como assim índio com acesso a internet?!?!’ Claro que tivemos que entrar numa conversa profunda sobre o índio ser uma pessoa como eu, como ela, como você que tem e deve utilizar todo aparato tecnológico disponível. E faço a vocês, o mesmo convite que fiz a ela enquanto falávamos: que tal se a gente experimentar tirar a roupa de colonizadores e ficar só com a under wear de humanos de vez em quando? Afinal, ao chegarmos nas profundezas da nossa origem, saberemos que ela é somente uma: humana. Me despeço com mais uma frase do Satish, que nos convida a uma reflexão sobre o futuro e sobre a apreciação (apreço + ação) de um presente com um olhar menos colonizador. Vai que vocês ficam curiosos em saber um pouco mais sobre ele:
“Nossas mãos devem possuir intenções de amor. Nossos corações, nossas mãos e a tecnologia devem estar sempre juntos. A sabedoria humana deve ser aplicada em como usar a tecnologia. Se colocarmos apenas nossa inteligência na tecnologia nos tornaremos escravos e a tecnologia a nossa mestra”*.___________________________________________________________________________________ *Tradução livre de frases do Satish Kumar em sua entrevista no Instituto Singularidades, São Paulo – Brasil em 17 de Março de 2017.