Ao conferir uma leitura sobre a pandemia do coronavírus e o isolamento social em entrevista ao jornal francês CNRS, o filósofo Edgar Morin explicita que o cenário nos impõe desconstruções: a desconstrução da crença em verdades absolutas na ciência, da obstinação por garantias e certezas, e da pesquisa sem controvérsias.
O momento em que vivemos tende a convencer cidadãos e pesquisadores de que as teorias científicas são biodegradáveis e que “a ciência é uma realidade humana que, como a democracia, se baseia em debates de ideias, embora seus métodos de verificação sejam mais rigorosos”.
Aos 98 anos, Morin acredita que somos obrigados a encarar as incertezas, mas que podemos abraçar a certeza dos fatos que acompanhamos diariamente: o despertar da solidariedade e a oportunidade de reforçar a consciência das verdades humanas que fazem a qualidade de vida: amor, amizade, comunhão e solidariedade. Leia a entrevista completa abaixo.
A pandemia de coronavírus trouxe brutalmente a ciência de volta ao centro da sociedade. Será que vamos sair transformados?
Edgar Morin: O que me impressiona é que grande parte do público via a ciência como o repertório de verdades absolutas, afirmações irrefutáveis. E todos ficaram tranquilos ao ver que o presidente estava cercado por um conselho científico. Mas o que aconteceu?
Rapidamente, percebemos que esses cientistas defendiam pontos de vista muito diferentes e, às vezes, contraditórios, seja nas medidas a serem adotadas, nos possíveis novos remédios para responder à emergência, na validade desse ou daquele medicamento, na duração dos ensaios clínicos a serem realizados …. Todas essas controvérsias introduzem dúvidas nas mentes dos cidadãos.
Você quer dizer que o público pode perder a confiança na ciência?
Edagar Morin: Não se ele entender que as ciências vivem e progridem através de controvérsias. Os debates em torno da cloroquina, por exemplo, levantaram a questão da alternativa entre urgência e cautela.
O mundo científico já conhecia fortes controvérsias na época do surgimento da Aids, nos anos 80. No entanto, o que nos mostrou os filósofos das ciências, é precisamente que as controvérsias são parte inerente da pesquisa.
Infelizmente, poucos cientistas leram Karl Popper, que estabeleceu que uma teoria só é científica se for refutável, Gaston Bachelard, que colocou o problema da complexidade do conhecimento, ou Thomas Kuhn, que mostrou como a história da ciência é um processo descontínuo. Muitos cientistas ignoram a contribuição desses grandes epistemólogos e ainda trabalham de uma perspectiva dogmática.
A crise atual provavelmente modificará essa visão da ciência?
Edgar Morin: Não posso prever, mas espero que sirva para revelar o quanto a ciência é mais complexa do que gostaríamos de acreditar.
A ciência é uma realidade humana que, como a democracia, se baseia em debates de ideias, embora seus métodos de verificação sejam mais rigorosos. Apesar disso, as principais teorias aceitas tendem a se tornar dogmatizadas, e os grandes inovadores sempre lutaram para que suas descobertas fossem reconhecidas.
O episódio que estamos passando hoje pode, portanto, ser o momento certo para conscientizar os cidadãos e pesquisadores da necessidade de entender que as teorias científicas não são absolutas, como os dogmas das religiões, mas biodegradáveis.
A catástrofe da saúde, ou a situação sem precedentes de confinamento que estamos enfrentando atualmente: qual você acha que é a mais impressionante?
Edgar Morin: Não há necessidade de estabelecer uma hierarquia entre essas duas situações, pois a sequência delas foi cronológica e leva a uma crise que se pode dizer da civilização, porque nos força a mudar nosso comportamento e mudar nossas vidas, local e globalmente.
Tudo isso é um todo complexo. Se você quer vê-lo de um ponto de vista filosófico, precisa tentar estabelecer a conexão entre todas essas crises e pensar antes de tudo na incerteza, que é a principal característica.
O que é muito interessante, na crise do coronavírus, é que ainda não temos certeza sobre a própria origem desse vírus, nem sobre suas diferentes formas, as populações que ataca, seus graus de nocividade. Mas também estamos passando por uma grande incerteza sobre todas as consequências da epidemia em todas as áreas, sociais, econômicas, etc…
Mas como você acha que essas incertezas formam o elo entre todas essas crises?
Edgar Morin: Temos que aprender a aceitá-las e a viver com elas, enquanto nossa civilização instalou em nós a necessidade de certezas cada vez maiores sobre o futuro, muitas vezes ilusórias, às vezes frívolas.
A chegada do coronavírus nos lembra que a incerteza permanece um elemento inexpugnável da condição humana. Todo o seguro social em que você pode se inscrever nunca poderá garantir que você não ficará doente ou será feliz em sua casa.
Tentamos nos cercar com o máximo de certezas, mas viver é navegar em um mar de incertezas, através de ilhotas e arquipélagos de certezas nos quais nos reabastecemos.
É sua própria regra de vida?
Edgar Morin: Pelo contrário, é o resultado da minha experiência. Testemunhei tantos eventos imprevistos em minha vida – desde a resistência soviética na década de 1930 até a queda da URSS, para mencionar apenas dois fatos históricos improváveis antes que eles acontecessem – que faz parte do meu jeito de ser.
Não vivo em permanente ansiedade, mas espero que eventos mais ou menos catastróficos ocorram. Não estou dizendo que previ a epidemia atual, mas digo, por vários anos, que com a degradação de nossa biosfera, devemos nos preparar para desastres. Sim, faz parte da minha filosofia: “Espere o inesperado”.
Além disso, eu me preocupo com o destino do mundo depois de ter entendido, quando li Heidegger em 1960, que vivemos na era planetária; em 2000, a globalização era um processo que poderia causar tanto dano quanto benefício.
Também observo que a explosão descontrolada do desenvolvimento tecnoeconômico, animada por uma sede ilimitada de lucro e favorecida por uma política neoliberal generalizada, tornou-se prejudicial e provocou crises de todos os tipos. A partir desse momento, estou intelectualmente preparado para enfrentar o inesperado, para enfrentar convulsões.
Como você julga a gestão da epidemia pelas autoridades públicas francesas?
Edgar Morin: Lamento que certas necessidades tenham sido negadas, como a de usar uma máscara, apenas para … esconder o fato de que não havia nenhuma. Disseram também: os testes são inúteis, apenas para camuflar o fato de que também não tínhamos testes. Seria humano reconhecer que os erros foram cometidos e que iremos corrigi-los. A responsabilidade passa pelo reconhecimento de seus erros.
Dito isto, observei que, desde seu primeiro discurso de crise, o Presidente Macron não falou apenas de empresas, ele falou de funcionários e trabalhadores. É uma primeira mudança. Espero que ele se liberte do mundo financeiro: ele até mencionou a possibilidade de mudar o modelo de desenvolvimento…
Caminhamos então para a mudança econômica?
Edgar Morin: Nosso sistema baseado em competitividade e rentabilidade geralmente tem sérias consequências para as condições de trabalho. A prática massiva de teletrabalho causada pelo confinamento pode ajudar a mudar o funcionamento das empresas que ainda são hierárquicas ou autoritárias demais.
A crise atual também pode acelerar o retorno à produção local e o abandono de toda a indústria descartável, dando assim novos empregos a artesãos e empresas locais. Nesse período em que os sindicatos são muito fracos, são todas essas ações coletivas que podem impactar na melhoria das condições de trabalho.
Estamos passando por uma mudança política, onde as relações entre o indivíduo e o coletivo estão mudando?
Edgar Morin: O interesse individual dominou tudo, e agora a solidariedade está despertando. Olhe para o mundo hospitalar: esse setor estava em profundo estado de dissensão e descontentamento, mas, diante do influxo de pacientes, demonstrou extraordinária solidariedade.
Mesmo confinada, a população entendeu isso bem e respondeu aplaudindo, à noite, todas as pessoas que se dedicam e trabalham para elas. Este é, sem dúvida, um momento de progresso, pelo menos em nível nacional.
Não estou dizendo que a sabedoria é permanecer no seu quarto a vida toda, mas, em relação ao nosso modo de consumir, esse confinamento talvez seja o momento de nos livrarmos dessa cultura industrial cujos vícios são conhecidos.
Infelizmente, não podemos falar de um despertar da solidariedade humana ou planetária. No entanto, já éramos seres humanos de todos os países, enfrentando os mesmos problemas diante da degradação ambiental ou do cinismo econômico.
Enquanto hoje, da Nigéria à Nova Zelândia, todos nos sentimos confinados, devemos perceber que nossos destinos estão ligados, gostemos ou não. Este seria um bom momento para refrescar nosso humanismo, porque até vermos a humanidade como uma comunidade de destino, não podemos pressionar os governos a agirem de maneira inovadora.
O que podemos aprender com a filosofia ao passar por esses longos períodos de confinamento?
Edgar Morin: É verdade que, para muitos de nós que vivemos grande parte de nossas vidas longe de casa, esse confinamento repentino pode representar um terrível embaraço. Mas eu acho que pode ser também uma oportunidade para refletir, para imaginar o que em nossa vida é frívolo ou inútil.
É também uma oportunidade de nos tornarmos permanentemente conscientes dessas verdades humanas que todos conhecemos, mas que são reprimidas em nosso subconsciente: que amor, amizade, comunhão, solidariedade são o que fazem a qualidade de vida.
Fonte: CNRS Le Journal