Estou sentada na mesa do meu escritório, pela janela à minha frente avisto uma árvore frondosa, com os seus galhos remexendo para lá e para cá, dançando no rítimo do vento frio de uma tarde ensolarada de outono.
Tento escrever o que foi a experiência que eu e mais 30 pessoas vivemos nestes últimos três dias ... num encontro, intenso, de conversas sobre a morte. O barulho ensurdecedor das palavras dentro de mim se depara com a barreira do silêncio que faço. Não sou capaz de colocar os pensamentos em palavras. Volto a olhar a janela.
Da dança entre os galhos e o vento, observo uma folha que cai, ainda existe nela uma dança e ela, inteiramente presente no seu processo de morte baila, alegremente, até tocar o chão.
Meu pensamento se desloca, rapidamente, para o tempo, para as histórias e as pequenas e grandes mortes do dia-a-dia. E na música frenética dos meus pensamentos resolvo fechar os meus olhos por alguns instantes, na esperança que eles apaguem a luz da minha mente e coloque os pensamentos para dormir.
Me sinto como um grande salão e em uma inspiração profunda as janelas se abrem, uma brisa suave entra, a atmosfera se serena, já não existe barulho.
Um dançarino adentra ao salão. Numa vitrola antiga coloca um vinil. O tocar da agulha no disco preto faz ecoar um som que me traz a memória as boas músicas da infância... É uma valsa. Com passos calmos e firmes vejo-o caminhar em minha direção e, ao mesmo tempo que sua mão direita me convida para a dança, ouço o iniciar da cantoria “Um dia ele chegou tão diferente, do seu jeito de sempre chegar...”
Não apresenta sua face, mas quando a sua mão esquerda se acomoda na minha cintura, delicadamente sussura seu nome em meu ouvido: Eu sou o tempo.
Eu e a música paralisamos sincronicamente. Nos olhamos. Ele dum jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar. Sustentamos um o olhar do outro, nos reconhecíamos. Eu n’Ele, Ele, em mim. Um avalanche de sentimendos me inundou, ele apertou a minha mão um pouco mais forte. Primeiro pedi licença ao medo e não maldisse a vida tanto quanto era meu jeito de sempre falar e fechei os olhos.
Dentro de mim começei a descer as escadas das minhas dúvidas, da raiva, da tristeza, dos meus julgamentos muitas vezes cruéis sobre mim e sobre os outros...meu coração dispara. Estou prestes a reencontrar algo precisoso. Abro uma porta velha com fechaduras enferrujadas. Olho e me vejo, aquela eu de quem tanto gosto e não a deixo só num canto; pra seu grande espantoconvido-a para rodar.
Então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar, com seu vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperarsubimos as escadas correndo. Quando abro os olhos é através dela que o vejo de novo e tão rápido quando um pensamento passo ser uma observadora de mim mesma. Daquela cena. Daquela eu de quem tanto gosto. Sorrio.
“Depois os dois deram-se os braços como há muito tempo não se usava dar, e cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar. E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou, e foi tanta felicidade que toda a cidade se iluminou. E foram tantos beijos loucos
tantos gritos roucos como não se ouvia mais. Que o mundo compreendeu...”
Como uma linda aquarela a cena começa a se dissipar. Inspiro profundamente e abro os olhos. Olho pela janela e lá fora já é noite, mas é cheiro de dia raiando que respiro. O dia amanheceu em paz.
*inspirado na Valsinha de Chico Buarque de Holanda.
Texto originalmente publicado no Diário de Hellene