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A Jornada da Heroína em Capitã Marvel

De que maneira a narrativa mítica de Maureen Murdock está presente no filme Capitã Marvel, e como essa relação é percebida pelo público?

Por Beatriz Cristina, Camila Lie, Gabriela Barbugian, Isabella Velleda, Larissa Silva, Marcus De Rosa e Rafaella Collaneri

Um mundo de heróis

Nossa cultura é moldada na forma como vemos e interpretamos o mundo. Contamos histórias que são passadas de geração em geração e que perduram no imaginário coletivo, construindo crenças, lendas e mitos. Dessa forma, as narrativas construídas ao longo da história da nossa sociedade até hoje nos fornecem modelos de mundo. Assim como afirma Jerome Bruner, em sua obra “Fabricando Histórias”:

“Uma narrativa molda não apenas um mundo, mas as mentes que procuram lhe dar significado.” (p. 35)

É o que ocorre com o herói: a figura mítica do herói molda gerações da humanidade desde a Antiguidade — lendas como de Perseu, Hércules e Aquiles ainda perduram como seres sublimes e extraordinários e figuras como Frodo, Harry Potter e os Vingadores emergem na contemporaneidade como personagens emblemáticos do heroísmo.

Essas narrativas, segundo o antropólogo Joseph Campbell, seguem uma estrutura semelhante, que pode ser compreendida como uma jornada cíclica. Em sua obra “O Herói de Mil Faces”, o autor argumenta que os mitos criados pelos humanos — mesmo em diferentes épocas e contextos — seguem arquétipos (conceito criado por Carl Jung, fundador da psicologia analista), ou seja, as “imagens primordiais” associadas a acontecimentos recorrentes ao longo de gerações, e que por isso suas estruturas seriam parecidas. Criou então os passos da transformação do homem em herói, abordando as provações que surgem em seu caminho.

Esse percurso do herói moldou inúmeras produções e referências da cultura pop — criando assim um modelo de sucesso e identificação com seus públicos. O Universo Marvel, por exemplo, trazido dos quadrinhos de Stan Lee para as produções cinematográficas, é uma das franquias mais bem sucedidas mundialmente, figurando ao lado de produções como Star Wars.

Entretanto, a estrutura narrativa de Campbell, apesar de explicar muitas narrativas, ainda não era suficiente para explicar outros movimentos, como as jornadas mais psicológicas e os dilemas e conflitos de personagens femininas. É claro que muitas narrativas com protagonistas femininas podem se encaixar na jornada de Campbell — uma vez que foi estruturada nos arquétipos humanos independente do gênero –, entretanto essa proposta não se adequa totalmente a suas histórias, pois as heroínas possuem demandas e dificuldades diferentes dos heróis homens.

Dessa forma, uma de suas estudantes, Maureen Murdock, sugeriu a Jornada da Heroína, compreendendo que aspectos sociais e culturais criam diferenças no modo como homens e mulheres reagem a conflitos.

Uma jornada em dez etapas

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Maureen Murdock (fonte: Sedona Women’s Institute)

MAUREEN Murdock é frequentemente considerada a primeira pessoa a propor um modelo narrativo alternativo à Jornada do Herói de Joseph Campbell — de quem fora aluna — , adaptando sua estrutura a fim de torná-la mais adequada para as histórias de vida das mulheres.

Murdock relata que, entre os trinta e cinquenta anos de idade, ela trabalhou como terapeuta e notou que muitas mulheres reclamavam dos sucessos adquiridos por elas no mercado. Esse sentimento era descrito como um senso de esterilidade, de vazio, até de traição. Para a autora, essas mulheres haviam abraçado a jornada do herói masculina e, apesar de terem alcançado certo reconhecimento acadêmico, artístico e financeiro, o questionamento principal permanecia: “Para quê serviu tudo isso?”

“Ao notar os danos físicos e emocionais aos quais essas mulheres incorriam nessa missão heroica, eu concluí que a razão para elas estarem passando por tanto sofrimento é que elas escolheram seguir um modelo que nega quem elas realmente são.” (MURDOCK,1990)

A resposta de Campbell para a sua tese, porém, foi um tanto cética:

“Em toda tradição mitológica, a mulher está lá. Tudo que ela precisa fazer é perceber que ela é o lugar onde as pessoas estão tentando chegar. Quando uma mulher percebe o quão boa ela é, ela não vai ficar confusa com a noção de que ela é um pseudo-homem.” (MURDOCK, 1990)

Insatisfeita, Murdock mergulhou ainda mais profundamente em seus estudos de narrativa e concebeu a Jornada da Heroína, baseada em sua perspectiva pessoal e de muitas outras mulheres de sua geração — a qual ela identifica como “pós-Sputnik” — que também foram encorajadas a serem bem-sucedidas a fim de recuperarem a “supremacia ocidental”.

As dez etapas da jornada estão descritas brevemente abaixo:

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Ilustração: Isabella Velleda

Essas etapas, porém, não são fixas ou restritivas. A rejeição filha-mãe inicial, por exemplo, pode se dar segundo dois arquétipos distintos da figura materna: a mãe “terrível” e a mãe “bondosa”. No primeiro caso, a filha estaria se separando da mãe que tenta aprisioná-la por ter inveja de seus talentos e de sua liberdade — ou seja, a mesma mãe que um dia lhe deu vida, agora tenta privá-la de tal. No segundo caso, a separação se dá com uma mãe que, por ser “boa demais”, acaba obscurecendo a filha, que por sua vez sai em busca de sua própria identidade.

Nesse sentido, a autora destaca, ainda, que o movimento através das etapas é cíclico, e que uma pessoa pode se encontrar em mais de uma etapa da jornada ao mesmo tempo. Além disso, ela argumenta que o modelo apresentado não está restrito a mulheres de determinada idade e nem mesmo ao gênero feminino. Ele, basicamente, aplica-se a pessoas que pretendem fazer contribuições para o mundo, mas que tem receios quanto ao que a nossa sociedade “orientada pelo progresso fez com a mente humana e com o equilíbrio ecológico do planeta.”


Análise de Capitã Marvel

EXISTEM diversos exemplos cinematográficos da cultura pop nos quais é possível identificar a presença do modelo narrativo da Jornada da Heroína. A Forma da Água e Dumplin’ são alguns daqueles mais recentes. Dentro desse contexto, porém, um filme apresenta maior destaque: Capitã Marvel.

Capitã Marvel (Captain Marvel, 2019) é a primeira produção estadunidense do Marvel Cinematic Universe(MCU)que conta com uma protagonista feminina. Baseado na história da personagem Carol Danvers, da Marvel Comics, o filme começou a ser desenvolvido em meados de maio de 2013. O seu enredo se passa em 1995, introduzindo a protagonista ao grupo de super-heróis do MCU e utilizando o planeta Terra e a fictícia região do Império Kree como cenário.

É possível conferir um dos trailers do filme abaixo:

Além de já ser considerada uma “heroína” no sentido que os quadrinhos buscam atribuir à palavra — uma pessoa com super poderes — , Carol Danvers também é uma heroína na medida em que ela está sujeita a percorrer a jornada proposta por Maureen Murdock. Relacionando a narrativa do filme com as etapas dessa jornada, é possível obter o seguinte vínculo:

1. Separação do feminino 

Carol Danvers (Brie Larson) tinha uma relação muito próxima com Mar-Vell (Annette Bening). Porém, após a perda de sua memória, Danvers passa a ver a imagem de Mar-Vell com dúvida: alguém que ela sabia que conhecia, mas com quem ela não conseguia compreender sua relação. Mesmo que Mar-Vell não seja a mãe de Danvers, sua personagem detém traços de figura materna.

2. Identificação com o masculino e reunião de aliados

Sem memórias, Carol Danvers é levada por Yon-Rogg (Jude Law) para fazer parte de sua equipe. Durante todo período em que eles ficam juntos, Yon-Rogg sempre fala para Danvers que ela precisa aprender controlar suas emoções para ser mais forte. Nessa etapa, não há uma quebra consciente dos padrões da heroína pelo fato de ela não ter memórias concretas sobre o passado. Porém, se levarmos como fator essa “escuridão” da memória como um rompimento entre a relação mãe-e-filha, a entrada de Yon-Rogg na vida de Danvers pode ser compreendida como a aproximação de uma figura masculina, ou um “pai”.

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3. Estrada das provações — conhecendo ogros e dragões

O maior conflito interno de Carol é lidar com suas emoções e seus poderes. Ela não sabe o quão forte é, e isso, paradoxalmente, é visto como uma “fraqueza”. Suas emoções são sempre associadas ao fracasso de si mesma, fazendo com que ela aparente ser o maior inimigo de si mesma. Outra provação pela qual ela passa é a relação abusiva que ela tem com Yon-Rogg, que a subjuga constantemente.

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“Eu estou meio que de saco cheio com você me dizendo o que eu não posso fazer”

4. Experimentando o “boom” de sucesso (a ilusão do sucesso)

Ao ser capturada pelos inimigos, Carol encontra-se na situação perfeita para testar todas suas habilidades. Ela consegue lutar sozinha contra uma tropa e sair vitoriosa. Percebe-se que, nesse momento, há uma elevação no estado da heroína, pelo fato de ela se sentir capaz de fazer qualquer coisa. Porém, alguns flashbacks abalam esse momento de glória.

5. Despertar de sentimentos de aridez espiritual — morte

Com os flashbacks, surgem na heroína dúvidas a respeito de si mesma e de sua vida. Há uma “traição de si”, e ela percebe que vida que ela tem levado não é verdadeira.

6. Iniciação e descida para a Deusa

Quando ela está na Terra, aos poucos algumas peças de sua vida vão sendo encaixadas para revelar sua verdadeira história. Ao longo dessa jornada, Carol tem uma crise de identidade, e ela não sabe afinal quem realmente é. Além disso, ela descobre o mal por trás da figura masculina (Yon-Rogg) que a tem guiado até então. Há um rompimento entre eles.

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7. Desejo urgente de reconectar com o feminino

Carol Danvers embarca em uma nova aventura para restabelecer o seu “ser”. Junto com seus amigos, ela parte em uma jornada para lutar contra Yon-Rogg e seus aliados. Sob outro ponto de vista, Danvers vai atrás de quem a prendia até então para desatar de uma vez os nós de um “eu” não verdadeiro.

8. Curando a separação mãe/filha

Carol Danvers não é apresentada de forma hiperssexualizada ou em um romance heterossexual. A maior parte da reconciliação pela qual a personagem passa tende ao lado feminino: ao mesmo tempo em que ocorre a separação dela com a figura masculina, ela descobre seu vínculo com a Mar-Vell (figura feminina/mãe). Danvers se sente motivada para lutar contra o inimigo e honrar os feitos e sacrifícios de Mar-Vell.

Outra figura feminina forte no filme é a amiga de Danvers, Maria Rambeau (Lashana Lynch). Rambeau representa, para Danvers, sua família: elas sempre estão juntas, não importa qual seja o desafio. A separação delas ocorre por causa da perda de memória da protagonista — porém, quando suas lembranças voltam, sua relação familiar também é restabelecida.

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Carol Danvers e Mônica, filha de Maria Rambeau.

9. Curando o masculino ferido (reincorporção ao masculino)

Danvers luta contra Yon-Rogg, mas não o mata. Isso demonstra o fim de um ciclo e o começo de outro. Ela reconhece que ele fez coisas boas para ela também, então prefere ser justa e entregá-lo às autoridades.

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10. Integração do masculino e feminino

Carol Danvers descobre seu verdadeiro poder e como controlá-lo. Além disso, ela aceita suas emoções e não as vê mais como fraquezas, mas como força. Em sua jornada de autoconhecimento ela conhece Nick Fury (Samuel L. Jackson), que interpreta um parceiro de aventuras. A amizade deles é o sinal do começo de um novo ciclo, e de uma nova relação entre feminino e masculino.

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“É difícil de explicar”.

Capitã Marvel e Capitão América: comparação entre os personagens pelos fãs

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Tanto a Capitã Marvel quanto o Capitão América pertencem à Marvel e apresentam características convergentes na construção de seus personagens no MCU (Marvel Cinematic Universe). Ambos serviram ao Exército Americano, eram subjugados e humilhados por seus superiores e possuem personalidades parecidas, destacando-se, nelas, atributos como o espírito de liderança e lealdade. Entretanto, esses personagens pertencem a modelos narrativos diferentes, tendo em vista que o Capitão segue a Jornada do Herói tradicional, enquanto a Capitã é o exemplo recente mais explícito da Jornada da Heroína. Kelly Sue DeConnick, escritora responsável por recriar Carol Danvers em 2012 nos quadrinhos, garante que ambos são diferentes citando cenas de seus filmes:

Carol cai o tempo todo. Mas ela sempre se levanta — dizemos isso sobre o Capitão América também, mas o Capitão América se levanta porque é a coisa certa a fazer. Carol se levanta porque ‘F***-se você!’

O feminismo presente no filme

Ajornalista Natalia Engler Prudencio é mestranda em Meios e Processos Audiovisuais na Escola de Comunicações e Artes da USP, e elabora pesquisas acerca de discursos feministas na cultura midiática. Ao ser perguntada sobre o feminismo presente no filme Capitã Marvel, ela levanta a questão da ideologia individualista que a mídia prefere passar:

“o filme é uma grande metáfora do processo de empoderamento individual, em que a própria mulher é responsável em construir sua própria confiança, sua própria auto-suficiência, sem que seja levada em consideração que não é uma questão individual, mas sim estrutural, ligada à várias hierarquias dentro da sociedade”.

Para Prudencio, o feminismo passado pelas produções cinematográficas é um estilo de vida, e assim deixa de ser visto como luta para mudar as estruturas da sociedade.

“Também entra em uma lógica neoliberal [a ideia do empoderamento individual], é quase um produto que as mulheres podem adquirir de diversas formas, como se fosse uma questão de mercado”.

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A pesquisadora também disse que isso está presente em outros filmes e séries, como por exemplo Orange Is The New Black e Jessica Jones.

Como jornalista, Natalia Engler disse que já passou por momentos de empolgação quando soube da visibilidade que filmes dariam as questões feministas, porém agora ela considera isso “limitado em termos de caminhar em uma maior igualdade porque vira um valor em si. Além de que essa visibilidade é um tipo mais aceito socialmente: mulheres brancas, quase sempre heterossexuais, dentro de uma lógica de que isso é o natural”.

Em relação da discussão acerca das emoções da personagem, o filme tenta fazer uma crítica à imagem construída das mulheres serem incapazes de controlar suas emoções, enquanto os homens são vistos como mais racionais. Além disso, “outro tipo de construção social é colocar as mulheres mais próximas da natureza, enquanto os homens mais próximos da cultura, da civilização”. Engler complementa dizendo:

“essas construções de que a mulher precisa estar sempre sorrindo e não saber controlar as emoções, têm relação com a divisão de público e privado; o lugar da mulher é privado, doméstico, enquanto o lugar do homem é público e político”.


Recepção crítica

Não é novidade para ninguém falarmos que Capitã Marvel foi um sucesso de bilheteria e entre os fãs da Marvel. Arrecadando mais de 1,1 bilhão de dólares desde sua estreia, o filme entrou para os 25 mais vistos de todos os tempos e um dos 7 mais vistos do MCU. O filme é o primeiro desse universo cinematográfico que coloca como protagonista da trama uma mulher, tem uma diretora coassinando o filme e levanta questões como feminismo, representatividade, sororidade e até mesmo imigração. Talvez tenha sido a mais aguardada das estreias para as mulheres fãs de quadrinhos e cultura nerd e sua reação não podia ter sido mais positiva entre esse grupo. Mas, para além de suas fãs devidamente uniformizadas como a super-heroína e que consomem seus produtos no mundo todo, o que a crítica especializada (ou não) achou do filme em si?

Basta uma pesquisa simples pelo termo “Capitã Marvel crítica” no Google que nos deparamos com uma enxurrada de vídeos e matérias falando sobre o filme e a importância que ele tem para os dias atuais. Usando como base os dez resultados principais dessa pesquisa é possível perceber um certo equilíbrio entre críticas escritas por mulheres e homens sobre o longa, mas se levarmos em conta outros aspectos o cenário muda.

Mais da metade (80%) das mulheres que escreveram sobre o filme levantaram em suas críticas a questão do feminismo e da representatividade, enquanto os homens se restringem a metade dessa porcentagem (40%). Essas críticas sugerem que o filme deu forças à discussão da temática feminista, por vezes abordada mais timidamente ou como gancho para uma abordagem além-Capitã Marvel, no entanto, pode-se perceber visões distorcidas da proposta do longa, como na crítica de Thales Menezes, para a Folha de S.Paulo, que afirma que

“[…] para quem procura um símbolo para o crescente protagonismo feminino no cinema, não existe um melhor do que Brie Larson numa roupa de borracha.”

O incômodo ao ler essa frase ou outras tão problemáticas quanto em críticas escritas por homens não se restringe as fãs do longa que percebem a sexualização fora de contexto e sem conexão com o filme. Além de outros pontos infundados nas críticas, a youtuber Mikann percebendo as diferenças entre as críticas femininas e masculinas fez um vídeo sobre a necessidade da excelência em filmes considerados representativos.

Na maioria das críticas que abordam o feminismo como um ponto importante do filme existe uma ressalva sobre a comercialidade motivadora dessas atitudes frente ao que realmente poderia ter sido abordado. A colunista do site Omelete, Marina Canhisares, ressalta que

“o interesse principal aqui não é necessariamente enaltecer o girl power ou fazer uma crítica social profunda, mas sim servir ao cronograma do estúdio. Afinal, a heroína chega aos cinemas com o peso de ter que provar que está à altura de Thanos”.

Uma crítica que se destaca é a proposta pela jornalista Juliana Varella, da revista Veja, que realiza além de uma análise do filme por si só, uma análise da indústria cinematográfica em que ele está inserido e o porquê de ser tão importante nos dias atuais. Trazendo dados sobre as mulheres presentes nas produções hollywoodianas eles sugerem que a igualdade de gêneros ainda é uma realidade distante. Um exemplo é o número de mulheres na direção dos 250 filmes mais visto de 2018 ser igual a 8%. O texto também apresenta o teste de Bechdel, um método de avaliação criado pela quadrinista Alison Bechdel baseado em três perguntas se existe mais de uma personagem feminina na obra; se elas conversam entre si; e se a conversa é sobre algo que não seja um homem. Capitã Marvel foi aprovado com mérito.

A Jornada da Heroína infelizmente é citada somente em uma das críticas e ressalta a construção da jornada de Carol Denvers durante o filme espelhada na proposta por Maureen Murdock. Novamente temos aqui a constatação de que o filme poderia ter explorado muito mais as possibilidades de discussão a partir dessa jornada, mas a comercialidade do filme torna-se um impeditivo de maiores abordagens. A ausência do clichê do interesse romântico focaliza a jornada em buscar autoconhecimento e na luta por uma causa maior, como Murdock propõe em sua teoria.

“Alcançar a transformação exige vencer, através do autoconhecimento e autoaceitação, a limitação que lhe é imposta, de diversas maneiras, de que não é capaz ou não pode ser tudo o que deseja apenas porque nasceu mulher”.

Em geral, o filme é colocado como divertido e simpático e que tem na humanização da personagem um dos seus pontos mais fortes. Porém, muita vezes descrito como morno ou sem muita personalidade própria, ele cumpre o papel que se propôs a ter apesar de ter um roteiro formulaico e previsível. Mariana Casinhares termina sua crítica dizendo que Capitã Marvel é um filme redondo e que tem uma líder forte e debochada, mas sem a arrogância de seu colega Tony Stark, e termina pontuando de forma precisa sobre o filme:

“É na sua empatia e na sua humanidade que ela triunfa.”

Conclusão

  • A jornada da Heroína: o Elixir está dentro de si

Segundo o apresentado, podemos chegar a uma diversidade de conclusões sobre como a Jornada da Heroína é representada no cinema popular contemporâneo e seu significado na sociedade de hoje. Os conceitos apresentados transmitem uma mensagem que muitas vezes não é clara, mas está presente e chega ao espectador pela forma de símbolos e arquétipos que se repetem à nossa volta constantemente.

No exemplo utilizado, vimos como a Jornada da Heroína é uma jornada de completude, e não de sucesso puro. Enquanto a teoria de Campbell apresenta como objetivo “final” a obtenção de um fator externo, denominado o “Elixir” (a cura, que pode ser interpretado como o preenchimento do vazio do herói), a Jornada apresentada por Murdock representa um aspecto mais profundo de preenchimento, o “Hieros Gamos”, o almejado equilíbrio entre masculino e feminino, a criação de um ser perfeito e completo por meio da aceitação da sua essência. Vemos isso em “Capitã Marvel” de modo claro, tendo em vista que o tema central do filme é o encontro de Carol (Vers) com sua identidade real. A busca pela essência do indivíduo é o mote no qual o filme se baseia.

Podemos ver a identificação inicial com o masculino como a maneira primordial de lidar com a Sombra, conceito apresentado pelo psicanalista Carl Jung. A Sombra é a essência do próprio indivíduo, imaculada das experiências do ego ou das expectativas externas. Por ser uma parte indissociável do ser, a Sombra representa o aspecto mais profundo do si, mas que a heroína, como todo indivíduo que embarca na jornada da individuação, não compreende, e busca reprimir. Para tal, ela abraça aspectos opostos aos seus até o momento, em busca de reconhecimento do próprio ser, recriando sua identidade a partir destes novos aspectos. Ao perseguir as emanações masculinas dentro de si, se depara com uma energia impulsiva e poderosa, não por ser masculina em si, mas por ser até então desconhecida, originada diretamente da própria Sombra.

Esse aspecto, denominado “masculino”, é impulsivo, bélico e instintivo de maneira descontrolada. A heroína, ao experimentar o masculino, se utiliza desta energia poderosa, mas imperfeita, estranha e, acima de tudo, destrutiva. Isso a leva ao sucesso, mas carregado da sensação de incompletude, frustração e vazio, pois o sucesso não foi obtido por ela, mas por esta forma distorcida que foi criada para reprimir a Sombra. Em “Capitã Marvel”, vemos essa energia “masculina” tomar o controle da protagonista constantemente, tanto internamente, enquanto Carol usa raiva e belicismo para expressar sua frustração, quanto externamente, manifestada pelo sistema Kree que a mantém sob seu controle por meio da figura de Yon-Rogg.

  • Domando a Besta, a iniciação

A heroína, frustrada, parte na verdadeira jornada em busca do sentido de seu sucesso, em busca de si mesma. Se inicia então a jornada para redimir a Sombra. Aqui ela inicia a busca pelo dasein de Martin Heidegger, o sentido de estar no mundo, o qual ela apenas pode alcançar pela compreensão de si mesma. Para tal, a heroína inicial, já metaforicamente morta, tendo em vista que a personalidade masculina que criara falhou em seu objetivo inicial, parte em busca da reunião com o feminino, o que Murdock denominou como o encontro com a Deusa. Este momento é menos claro no filme, mas podemos ver o encontro de Vers com sua verdadeira identidade, Carol, como sua morte. A rememoração dos fatos que levaram ao seu rapto e sua relação com a Dra. Lawson, somados ao reencontro com sua amiga Maria são diferentes passos de sua iniciação, na qual ocorre o reencontro com o feminino, culminando no seu renascimento como Capitã Marvel, simbolizado pela mudança das cores de seu traje.

Neste estágio, a heroína compreende que sua contraparte masculina tem a função de complementar o feminino, e não substituí-lo, tendo em vista que o masculino puro que experimentara trouxe sucesso, mas juntamente a ele, destruição e frustração, como reflexo da selvageria, belicismo e descontrole deste modo de ação e pensamento, sem o ponderamento pertencente ao feminino arquetípico.

A heroína passa então por sua iniciação com a Deusa, na qual ela obtém a compreensão destes conceitos apresentados, e sua busca toma o objetivo de equilibrar esses aspectos de si, chegando a sua essência como ser. Isso ocorre devido à aceitação de sua Sombra, a tomada de consciência de sua essência e de como entrar em contato com ela, gerando o entendimento de que este aspecto primordial de seu ser é parte inerente deste, e é a maneira pela qual ela pode chegar ao seu objetivo final, a completude, o dasein. Ela procura pela construção da própria experiência, e não aquela construída exteriormente por normas sociais, narrativas e preconceitos: ela procura sua própria narrativa, o verdadeiro processo de individuação. A aceitação da sombra, e a união dos aspectos masculinos e femininos, ou seja, o hieros gamos, se mostra quando Carol derrota a Inteligência Suprema e se liberta da ferramenta que a oprimira.

  • A intuição: a Sombra criativa

Após a iniciação, a heroína se encontra como portadora de um aspecto essencial: a compreensão. Essa compreensão é o próprio reencontro com o feminino, mas agora adicionado à experiência com o masculino, de maneira que ela agora sabe como utilizar seus dois aspectos em conjunto, criando uma terceira qualidade, pertencente a ambos aspectos: a Intuição. A Intuição se origina quando a heroína obtém sucesso em redimir a Sombra, entrar em contato com sua essência e usar sua energia sem que ela destrua o caminho pelo qual ela passa.

Essa nova ferramenta recém descoberta revela um poder antes desconhecido da heroína, o qual ela usa para cumprir o destino criado por ela própria como indivíduo, independente dos riscos e obstáculos. Isso se dá pelo controle do instinto cru e selvagem da energia masculina, quando usada em conjunto ao feminino, o controle do destrutivo, usando esta energia de forma criativa. Obtendo uma forma de completude hermafrodita.

A heroína então entra em contato com si mesma, reencontrando o seu sucesso de uma forma que este passa a fazer sentido dentro de sua existência, tendo em vista que ela agora é um indivíduo completo e desligado das interferências externas e maculações do ego. Isso é demonstrado no filme quando Carol desenvolve sua habilidade de voar. Assim como os aviões que pilotava, agora a protagonista sabe como pilotar a si mesma, mostrando que ela atingiu o equilíbrio almejado desde o início da jornada. Ela sabe quem é, o que quer e quais são seus valores, desenvolvidos a partir de uma experiência totalmente individual, o seja, sua individuação está completa. A heroína encontrou o Elixir, mas ao contrário da teoria de Campbell, Murdock mostra que ela o faz dentro de si mesma.

Fonte: Jornada da Heroina

Bibliografia básica

BRUNER, Jerome. “Fabricando Histórias — Direito, Literatura, Vida”, 2014.

MURDOCK, Maureen. “The Heroine’s Journey”, 1990.

CANHISARES, Mariana. “Capitã Marvel”. Disponível em: <https://www.omelete.com.br/filmes/criticas/capita-marvel>

VARELLA, Juliana. “‘Capitã Marvel’ chega como exceção na indústria masculina dos super-heróis”. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/entretenimento/capita-marvel-chega-como-excecao-na-industria-masculina-dos-super-herois/>


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