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Legathum | Neuropsicólogo brasileiro cria projeto que usa inteligência artificial para “conversar” com mortos

"Espero deixar meu conhecimento e meu 'mindset' como legado. Porque não sou uma pessoa com uma inteligência regular. É muito acima da média. A morte seria um desperdício do meu cérebro", diz a profissional de marketing, programadora e astróloga Cris Saviani.

Para contornar o problema, Cris não pretende escrever um livro ou se valer de alguma outra saída, digamos, comum. Ela quis participar de um projeto que armazenará uma vasta quantidade de dados a seu respeito. Um perfil virtual que funcionará como um arquivo de todos os aspectos possíveis de sua personalidade, e que estará disponível depois de sua morte.

Cris é uma das doze "cobaias" da fase inicial do Legathum, um aplicativo que usa inteligência artificial para criar uma versão virtual da pessoa. Vem sendo desenvolvido pela startup criada por Deibson Silva, neuropsicólogo formado pela USP (Universidade de São Paulo).

Mentores virtuais

A iniciativa conta com o apoio do departamento de ciência e tecnologia da Universidade de Berkeley, da Califórnia. "Estamos na fase de 'input'. Um bot [robô] guia os participantes a compartilhar suas informações, memórias, aprendizados do dia a dia, memórias da infância até os dias de hoje, histórias marcantes e expertises", explica o neuropsicólogo.

Ele faz questão de pontuar que o maior objetivo do Legathum é captar as informações sobre as pessoas enquanto elas estão vivas para "fazer um mapeamento de seus perfis, valores, forças de caráter, crenças e paradigmas para que no futuro tenhamos uma rede social de mentores virtuais".

Ou seja, em vez de apenas lembrar quão sábio era seu avô, você poderá acessar o perfil dele no app para saber, por ele próprio, qual foi o momento mais importante de sua vida. O que ele sentiu. O que pensava sobre um certo tema. Que conselhos daria, caso você estivesse em uma determinada situação.

O usuário decidirá quem poderá acessar ou não os dados do seu perfil após a morte. Mensagens em texto, em áudio, fotos e vídeos pessoais irão compor o mosaico da vida. Até aí, você pode pensar, basta abrir uma pasta em "meus documentos" e colocar lá tudo o que acha válido para se definir como ser humano.

Mas o diferencial do Legathum, de acordo com seu criador, é mapear a "mente inconsciente" dos usuários. Captar as nuances e subjetividades de suas personalidades. Seus "padrões de intenção" e de "tomada de decisão".

"Isso nós já conseguimos fazer", diz Silva. "O grande desafio é transferir esses dados para a inteligência artificial e ensiná-la a ser você em qualquer circunstância."

Chamada de vídeo com o falecido

Isso significa que você não vai apenas assistir a um vídeo do seu tio contando como foi ver o Corinthians ganhar a Libertadores. Em um estágio mais avançado do Legathum, você terá a oportunidade de conversar com ele.

"Estamos trabalhando para que, no futuro, você possa fazer uma chamada de vídeo", revela o neuropsicólogo.

"Seu filho, por exemplo, poderá fazer uma chamada de vídeo e falar com a sua versão virtual", explica Silva. "Será como um FaceTime. Com a tecnologia do deepface, é possível reproduzir a imagem de um ser humano."

Na conversa com o TAB, o neuropsicólogo fala do Legathum com orgulho, ao mesmo tempo em que demonstra certa preocupação. Faz questão de frisar que, para ele, o mais importante é o app preservar a memória das pessoas, evitando que as lembranças se diluam com o tempo.

'Black Mirror' antecipou tecnologia

Silva se mostra incomodado em apresentar o Legathum apenas como o "app para falar com os mortos". Afirma que só assistiu ao episódio "Be Right Back", de "Black Mirror", um dia antes da entrevista e logo esclarece que seu intuito é bem diferente daquilo que aparece na sinistra série distópica britânica.

No episódio, uma mulher perde o companheiro em um acidente de carro e, após resistir por um tempo, contrata um serviço que compila todos os dados disponíveis sobre ele para criar uma versão virtual do morto. A personagem começa trocando e-mails, depois faz ligações e acaba optando por receber uma versão física do falecido.

É um androide perfeitamente idêntico ao namorado morto e a história não tem um final exatamente feliz. É possível que, uma vez lançado, fique claro que o Legathum nada tem a ver com a ficção. Assistindo ao episódio, porém, a proposta do app parece idêntica a da imaginada pelos criadores do episódio. Só não inclui a versão física.

Isso não quer dizer que as consequências serão iguais. Silva parece confiante a respeito disso. Ele diz que ajudar o outro a lidar com o tabu da morte está entre suas expectativas. "Tem gente que não gosta nem de pronunciar essa palavra (morte), mas é a única certeza que nós temos. Que vamos partir desta dimensão física para a nossa dimensão de origem."

Dificuldade em lidar com a morte

A jornalista Camila Appel, que mantém o blog "Morte Sem Tabu" na Folha de S.Paulo, tende a discordar do otimismo de Silva. "Me parece o contrário. A proposta do app realça o tabu da morte. Ele parte do princípio de que temos uma grande dificuldade de lidar com a finitude, com o ciclo da vida."

Na visão de Camila, a proposta do Legathum é justamente a de não aceitar a mortalidade. "É uma busca pela perpetuação do ego, que é a consciência, a personalidade. O app vai reforçar nossa negação da finitude", diz Camila. Ela cita Ernest Becker, antropólogo norte-americano que venceu o Prêmio Pulitzer de 1974 por um obra chamada A Negação da Morte"

"Becker diz que nossa necessidade de sempre tentar ultrapassar a morte, deixar legados e permanecermos eternamente é algo que pode nos prejudicar como sociedade, como indivíduos, e esta por trás de várias paranoias modernas", diz a jornalista.

O neuropsicólogo aposta no exato oposto. "Pode até ser que o app piore o luto da pessoa. Mas acredito que, na maior parte das vezes, será melhor para ela. Se sentirá homenageada. Sentirá a alegria de ver novamente o ente querido, agora com as memórias eternizadas", diz.

Disfarce da realidade

No momento, 15 profissionais de diversas áreas estão envolvidos no desenvolvimento do aplicativo. Uma vez pronto, os usuários pagarão "um preço acessível" para utilizá-lo, segundo o idealizador. Silva sabe que as críticas virão, mas se diz preparado. "Na verdade, eu não me importo (com as críticas). Tenho meu propósito muito claro e estou feliz em poder contribuir com a humanidade."

Psicóloga especializada em luto, Gabriela Casellato avalia que a proposta do aplicativo "poderia ser uma estratégia útil em casos de perdas súbitas e violentas nas quais não se teve a chance de concretizar a morte e se despedir, mas a pessoa precisaria ser conduzida por um profissional especializado que usaria o app na medida certa".

No geral, porém, ela é cautelosa. "Por mais difícil que seja conviver com a ausência, disfarçar ou distorcer a realidade pode ser muito perigoso para a saúde mental do enlutado, pois confunde e adia o enfrentamento de algo inevitável, podendo comprometer seu ajustamento à vida e aos relacionamentos sociais", diz a especialista.

"Um app usado livremente pelo enlutado estaria a serviço de suas angústias e desespero diante da saudade", alerta Gabriela, "impedindo o desenvolvimento de recursos pessoais de enfrentamento. Portanto, temos que tomar muito cuidado com o uso da tecnologia a serviço de soluções 'mágicas' que funcionam como falsos anestésicos. Quando seu efeito acaba, a ressaca é muito dolorosa."

Cris Saviani não se preocupa com a possibilidade de as pessoas acharem sua participação no projeto um tanto mórbida. "Não me assusta. Na verdade, acho um privilégio poder continuar usufruindo da sabedoria de certas pessoas (depois que elas morrem). Eu não teria nenhum problema em usar o app (para falar com alguém falecido)."

Ela lembra o show em que o rapper Snoop Dogg cantou lado a lado com o holograma de um rapper já falecido, Tupac Shakur, na edição 2012 do festival Coachella. "Foi muito impressionante para mim, achei aquilo mágico. Era como se ele estivesse vivo de novo", diz.

Matéria Publicada pelo Uol


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