O Disney+, serviço de streaming dos megapoderosos estúdios Disney, chega ao Brasil nesta terça-feira (17) com uma novidade: a autocrítica.
A empresa, que vende uma imagem de valores familiares, liberais (mesmo aos poucos) e de diversidade, chega ao país com diversos filmes e animações clássicas com um aviso alertando o espectador de que a obra “inclui representações negativas e/ou tratamento incorreto de pessoas ou culturas.”
O texto que antecede certos desenhos, como “Peter Pan” (1953) e “Dumbo” (1941), é mostrado na tela por 12 segundos e não pode ser pausado ou evitado. A assessoria da Disney confirmou que a versão brasileira do Disney+ trará a contextualização em português, mas não enviou o conteúdo oficial —curiosamente, um dia antes da estreia, os avisos deixaram de aparecer para este repórter nos Estados Unidos.
A tradução livre da advertência diz: “Esses estereótipos eram errados no passado e são errados hoje em dia. Em vez de eliminarmos esse conteúdo, queremos reconhecer seu impacto prejudicial, aprender com isso e provocar discussões para criarmos um futuro mais inclusivo juntos.”
O aviso foi inserido em outubro passado, depois dos protestos que mobilizaram milhões de pessoas nos EUA contra os constantes ataques desproporcionais da polícia norte-americana contra membros da comunidade negra. Antes disso, havia apenas a mensagem “Esse programa é apresentado como foi originalmente criado. Pode conter representações culturais ultrapassadas.”
Ao atualizar a advertência, a Disney deu um passo importante para assumir erros do passado, alguns distantes, outros nem tanto —“Aladdin”, por exemplo, foi lançado em 1992 com uma música generalizando o Oriente Médio como terra de bárbaros. A grande maioria dos desenhos com a nova estampa, contudo, é de meados do século passado.
“Dumbo” é um deles. A animação do elefantinho com orelhas gigantes traz um grupo de corvos malandros cujo líder se chama Jim Crow. Crow é “corvo” em inglês, mas o nome também é o mesmo das leis de opressão e segregação contra os negros no sul dos Estados Unidos em parte do século 19.
“Os corvos e o número musical prestam homenagem a shows racistas em que artistas brancos com rostos enegrecidos e roupas esfarrapadas imitavam e ridicularizavam escravos africanos em plantações sulistas”, diz o texto de admissão de culpa feita pela própria Disney no site “Stories Matter” (“Histórias Importam”) que é promovido no aviso.
Essa foi uma das medidas adotadas pelo estúdio em busca de um equilíbrio entre obras que refletiam uma época com seus erros com a evolução dos direitos das minorias. Segundo o site, a empresa agora está trabalhando com a Associação de Críticos de Cinema Afro-Americanos, Aliança Gay e Lésbica Contra Difamação (GLAAD), Associação de Produtores Latinos Independentes e organizações de proteção de nativos-americanos e asiáticos.
Mas não esperem que a Disney resgate o musical “Canção do Sul” (1946), que nunca foi lançado para home entertainment por retratar o sul escravagista dos Estados Unidos como um lugar idílico onde patrões e escravos tinham uma relação cordial e alegre.
Ou que o clássico “Fantasia” (1940) ganhe o corte original que mostra uma centauro negra escovando os cascos de sua colega branca. Há limites para tudo. Até para os avisos antirracistas.
VÁ COM CALMA
Filmes do Disney+ que contêm avisos sobre conteúdo preconceituoso:
Fantasia (1940)
Apesar da cena mais controversa (uma centauro negra escovando os cascos de uma branca) ter sido cortada há anos, a obra-prima de Walt Disney ainda continua com o aviso de “representação ultrapassada”.
A animação se trata de vários curtas dentro de um mesmo longa-metragem. A proposta foi colocar a música erudita como complemento para arte visual das animações, contribuindo para o desenvolvimento da produção.
Apesar do fator inovador, a animação tem uma cena extremamente racista. No momento em que seres mitológicos protagonizam a sequência, uma centauro fêmea negra aparece polindo os cascos de duas fêmeas centauro branca – estereótipo racista explícito.
Dumbo (1941)
O líder dos corvos do desenho se chama Jim Crow, mesmo nome das leis de segregação racial em voga no sul dos EUA em boa parte do século 19. O quadro musical é uma homenagem aos shows nos quais artistas brancos pintavam os rostos de negro para fazer piadas com escravos.
O famoso filme do bebê elefante de circo possui diversas cenas preconceituosas. Uma delas – provavelmente a mais marcante – é uma canção “When I See an Elephant Fly” interpretada por corvos durante imitação dos espetáculos de menestréis.
A apresentação popular consistia, resumidamente, em atores brancos pintando o rosto de preto – prática racista conhecida como “blackface” atualmente – e interpretando estereótipos exagerados e caricaturas de pessoas afro-americanas.
Além desse momento do filme, outro trecho conta com a faixa “Song of the Roustabouts”, a qual trabalhadores negros sem rosto cantam enquanto erguem a tenda do circo. A letra cantada por eles conta com trechos que falam sobre serem analfabetos e, apesar das longas jornadas de trabalho, serem felizes.
Alô, Amigos (1942)
Não há nada muito ofensivo para quem é latino-americano, mas a representação pode ser encarada como datada —obviamente, para um filme de quase 80 anos.
Você já foi à Bahia? (1944)
Nesta animação, Pato Donald viaja com Zé Carioca por América Latina bem estereotipada —o Brasil é, basicamente, uma grande selva.
A Canção do Sul (1946)
O longa se passa no sul dos Estados Unidos em período posterior ao fim da escravidão. A produção – que mistura animação e atores reais – recebe diversas críticas pela representação idealizada da vida de ex-escravos, como Tio Remus, o protagonista. Ele é estereotipado como o “negro sábio e místico”, além de usar seus conhecimentos para ajudar um personagem branco.
Além do conteúdo racista, os acontecimentos por trás das câmeras são um reflexo do contexto da época. James Baskett, a ator de Tio Remus, foi impedido de comparecer à própria estreia do longa, no estado de Atlanta – distrito que ainda era segregado e não permitia a entrada de negros em cinemas.
Peter Pan (1953)
A animação apresenta estereótipos rasos de indígenas que falam uma língua ininteligível. Eles também são chamados com o termo ofensivo “peles-vermelhas”.
A famosa animação da Disney conta a história de Wendy e seus irmãos, levados para o mundo mágico da Terra do Nunca com Peter Pan, o herói do longa. Apesar do sucesso entre crianças e adultos, o filme conta com uma cena extremamente preconceituosa: a dos indígenas.
No longa, os indígenas são representados como animais ou como pessoas totalmente ignorantes. Durante a música “What Made Red Man Red”, os indígenas explicam porque eles têm a pele vermelha: “Quando o primeiro bravo se casou com uma mulher de pele vermelha / Ele deu um grande ugh / Quando viu sua sogra.”
Além disso, o estereótipo do indígena representado no longa é reproduzido esdruxulamente, com penas, fogueiras, danças e rituais – todas as características apresentadas de modo superficial.
A Dama e o Vagabundo (1955)
Traz um par de gatos malvados siameses com traços asiáticos exagerados. Além disso, cães que são personagem secundários propagam fisicalidades raciais estereotipadas. Cena famosa de ‘A Dama e o Vagabundo’, de 1955.
A Cidadela dos Robinsons (1960)
Neste filme, os piratas que ameaçam a família são são representados por atores brancos com peles pintadas de amarelo ou marrom e reforçam a ideia de barbarismo asiático com linguagens ininteligíveis.
Mogli (1967)
O personagem do Rei Louie é um orangotango que canta jazz e bebop, estilos basicamente dominados por músicos negros na época. Louie é considerado um estereotipo racista de afro-americanos.
Aristogatas (1970)
Um gato siamês é uma caricatura antropomórfica de um asiático, com traços exagerados e sotaque forçado. Dublado por um homem branco, ele toca piano com hashis. A letra da música ainda tira sarro da língua chinesa.
A animação conta a história de um grupo de gatos aos quais a dona – e milionária – madame Adelaide Bonfamille, pretende deixar toda a herança. Após descobrir isso, o mordomo chamado Edgar Baltazar abandona os gatos para se tornar o beneficiário de toda a herança.
Em Aristogatas, a cena de gatos siameses tocando piano com par de pauzinhos é extremamente racista. Com vozes que parodiam sotaque do leste asiático, o filme conseguiu fazer a cena musical ser extremamente preconceituosa com a cultura asiática.
Aladdin (1992)
Apesar da música “Arabian Nights” ter sido alterada logo depois do lançamento da animação, o retrato do oriente como uma terra bárbara e repleta de perigos ainda permanece.
O começo de Aladdin conta com uma música – no mínimo – preconceituosa sobre a cultura árabe.
No início do longa, ainda com os créditos de abertura, toca a canção “A Noite da Arábia”, cuja letra fala: Venho de um lugar / Onde sempre se vê / Uma caravana passar / Vão cortar sua orelha / Pra mostrar pra você / Como é bárbaro nosso lar.”
Além da faixa, uma característica física de Aladdin é criticada ao longo do filme. No início, o protagonista é pobre e seu tom de pele é mais escuro. Depois, quando namora a princesa Jasmine, a pele de Aladdin fica mais clara.
Pocahontas (1995)
A animação conta a história amor entre Pocahontas (chefe de grupo de nativo-americanos) e John Smith, personagem baseado no verdadeiro capitão da Marinha Real Britânica, que chegou ao local com os colonizadores.
Em uma das cenas do longa animado, o governador Ratcliffe – também baseado em uma figura histórica real e vilão da história – canta uma música extremamente preconceituosa sobre os indígenas norte-americanos. Na canção, ele diz: “O que esperar desses pagãos nojentos?/Dessa maldita raça e horrível cor / Eu sei o que merecem / São bons quando falecem / São bichos, animais, ou pior / São bárbaros, bárbaros.”
Apesar de Ratcliffe ser o vilão que deseja colonizar o local a qualquer custo, a letra da canção revela um pensamento muito preconceituoso.
Toy Story 2 (1999)
Toy Story 2 apresenta um novo personagem aos telespectadores: o vilão Stinky Pete (Mineiro, na tradução brasileira). Noa créditos do longa, o personagem protagoniza uma cena de assédio, mais tarde excluída do filme.
Na cena, Mineiro aparece ao lado de duas bonecas Barbie, dentro de uma caixa de brinquedo. O personagem diz, enquanto toca a mão de uma das bonecas: “Então, vocês duas são absolutamente idênticas? Tenho certeza de que posso conseguir um papel para vocês em Toy Story 3.”
No entanto, ao perceber que estava sendo filmado, Mineiro desconversa, muda o tom e encerra o diálogo. Segundo o The Guardian, a cena foi deletada depois que John Lasseter, diretor de Toy Story, saiu do cargo devido à acusações de assédio sexual.
A Princesa e o Sapo (2009)
O filme, famoso pela primeira princesa negra da franquia Disney Princesas, fez com que o estúdio fosse elogiado pela representatividade. No entanto, o nome da protagonista gerou polêmicas.
Inicialmente, a princesa teria o nome Maddy, o que críticos relacionaram a “Mammy”, modo como as escravas eram tratadas no sul dos Estados Unidos. Além disso, Maddy seria abreviação de Madeleine – nome usado frequentemente por escravos. Após as críticas, o nome da heroína foi modificado, de Maddy para Princesa Tiana.